Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

O primeiro “não”

Publicado em: Qua, 23/09/20 - 13h49

No isolamento, o zap virou o jeito preferido das pessoas se aproximarem, trocarem carinhos, presenças, piadas. Além de eventualmente fazer o mesmo, adotei outro hábito: comuniquei-me com frequência com parentes e amigos através daquele antigo meio de bate-papo hoje em desuso: o telefonema, lembram-se? O áudio é o insubstituível portador das risadas, da voz travada pela emoção, do calor de certas palavras ditas e não apenas escritas numa mensagem impessoal de texto. Em vários desses colóquios – enquanto ouvia, pacientemente, queixas de famílias às voltas com a filharada indócil presa em casa – um assunto se repetia e me deixava curioso.

Uma velha amiga enfrenta com bravura (e braveza, quando necessário) sua condição simultânea de mãe e pai, já que cria e educa sozinha dois filhos adolescentes. Foi dela que captei o primeiro sinal de alerta para uma das consequências mais curiosas – e penosas – da pandemia. Muito atenta, ela ponderava sobre as dificuldades de exercer um mínimo de ordem e disciplina dentro de casa nesses tempos de isolamento:

- Eu já fiquei de castigo várias vezes quando era mocinha; um fim-de-semana sem cinema, por exemplo. Tudo bem; era normal encararmos os “nãos”; minhas amigas também ficavam de castigo. Agora, qualquer atitude mais enérgica pelo bem de todos e felicidade geral da família vira uma discussão infindável com os filhos, um chororó irritante.

O fato é que temos aí uma geração exageradamente mal-acostumada com o “sim”; tudo podia, tudo era fácil e possível. Quase tudo era permitido nesse universo maravilhoso do milênio, sobretudo no Brasil, onde leis viram brincadeira e limites são transpostos impunemente. Os adolescentes também se beneficiavam dos milagres da tecnologia, das discretas transgressões sociais, das brechas de uma sociedade permissiva e dos mimos de seus pais e mães modernos e tolerantes. A mais banal atitude disciplinar, educativa ou limitadora passou a ser considerada “autoritária”.

De repente, a pandemia. Embora seja um transtorno incalculável para a humanidade, sinto que o impacto sobre gerações mais jovens foi bem mais marcante e dramático. Pela primeiríssima vez muitos garotos e garotas se depararam com uma conjuntura adversa de verdade. Os pais – canais costumeiros para solução de problemas pequenos, médios e grandes – dessa vez, infelizmente, não poderiam resolver. Dessa vez não dava para quebrar o galho.

Ou seja: pintou um “não pode” daqueles bravos na vida deles – e fim de papo. O mundo real mostrou sua face dura, fria, quase hostil. Passeios ao shopping proibidos; baladas e viagens canceladas; formaturas, bailes e casamentos adiados; namoros, paqueras e turma só por “lives”; rotinas tediosas e aborrecidas dentro de casa, convívio obrigatório com familiares e seus problemas. Essa situação assustadora levou muitos jovens aos consultórios médicos com diagnósticos de ansiedade e depressão.

Para compensar, além de enfrentarem o primeiro “não” intransponível de suas vidas, certos adolescentes devem estar tendo, de tabela, as primeiras noções de respeito ao próximo, solidariedade, sentido de coletividade e responsabilidade individual. E ainda ganharam a chance de refletirem sobre um dado fundamental para seus futuros como adultos: “pô, véio, não sou o centro do mundo”.

Pois é: até de uma pandemia pode-se tirar alguma coisa que preste.

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.