Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

O salmão de Umberto

Publicado em: Qui, 26/05/16 - 04h45

Mês passado, revirando pilhas de lançamentos na Feltrinelli Internacional (uma das melhores livrarias de Roma, junto à Piazza della Repubblica) deparei-me com uma preciosidade denominada “Como viajar com um salmão” (“Come viaggiare con un salmone”, Ed. La Nave di Teseo, 2016; ainda sem tradução no Brasil). O título já mexera com minha curiosidade, mas o nome do autor me intrigava mais: Umberto Eco. Sim, ele mesmo! Trata-se de uma coletânea de suas crônicas (ele também era cronista, sabiam?) carinhosamente montada após a sua morte, nas quais Umberto conseguiu elaborar, segundo o editor, “um manual de instruções sui-generis para o enfrentamento de situações especiais”. Abri direto do índice e comecei a rir dos nomes dos capítulos, todos iniciados com o estimulante “como”. Vejam só alguns: “Como ter férias inteligentes”, “Como seguir instruções”, “Como não discutir futebol”, “Como comer dentro do avião”, “Como tomar sorvete”, “Como praticar filosofia em casa”, “Como conversar com os bichos” e outros engraçadíssimos. Não resisti, comprei na hora, ansioso pelas lições do mestre, e não me arrependi.

Impossível reproduzir aqui na íntegra as pérolas do tratado do “como fazer”, tamanha a extensão da obra, salpicada em cada página com o brilho de sua ironia e humor refinadíssimo. Porém, separei alguns trechos impagáveis. Na crônica que dá título à publicação, conta-nos Umberto que estava a trabalho na Suécia quando foi agraciado por um amigo com um belíssimo – e imenso – salmão defumado. O peixe ostentava a logomarca de uma das melhores e mais raras marcas escandinavas, coisa fina. Guloso como todo bom italiano, botou-o sob o braço para degustá-lo em casa. Só que a viagem de volta ainda previa escalas em Londres e Paris, onde faria palestras. E aí tudo se complica – desde o tamanho reduzido dos frigobares dos hotéis, incapazes de receber o salmão no pernoite, até os percalços de subir a bordo da classe econômica de um Airbus com o peixe disfarçado na bagagem de mão.

Visitante assíduo das maiores cidades do mundo, Umberto dedicou longas recomendações aos turistas na crônica “Como usar um táxi”. Diz ele: “em Estocolmo só é possível chamar um táxi por telefone, já que os taxistas não confiam em quem lhes acena na rua. Mas para saber qual é o número do telefone você precisa acenar, parar um táxi na rua e perguntar. Logo, desista de pegar um táxi em Estocolmo”. Também compara os taxistas alemães – discretos, silenciosos e voando em suas Mercedes – com os táxis Volkswagen do Rio (esta crônica é antiga). Afirma que, apesar da diferença abissal entre os dois modelos de carros, se os dois disputassem uma corrida o carioca chegaria antes – porque não para jamais nos sinais vermelhos. Finaliza afirmando que é fácil reconhecer um taxista – “é sempre aquele cara que não tem troco”. 

Em “Como ser um índio num filme de cowboy”, Umberto tem o cuidado de dividir o assunto em pequenos tópicos: “Antes do ataque”; “Ataque ao forte” e o genial “Ataque à carroça”, onde enumera os mais manjados clichês cinematográficos. “Mesmo que seu cavalo selvagem seja muito mais rápido que a carroça, contenha-o por vários minutos, gritando e agitando sua lança antes de se aproximar do cocheiro – ou a perseguição se consumará depressa e a cena perderá toda a graça”.
Já no “Como apresentar um catálogo de arte”, ele reúne uma série de frases prontas encontráveis em qualquer folheto de uma exposição, elogiando “a ousadia deste artista que há trinta anos pinta um triângulo isósceles na base da tela, sobre o qual aplica um outro triângulo escaleno vermelho inclinado na direção sudoeste rumo a um terceiro triângulo – este, equilátero”.

O melhor do livro é perceber que um dos mais sérios e respeitáveis escritores, filósofos, semiólogos e estudiosos da comunicação de massas de nossa época conseguiu ser surpreendentemente hilariante no trato das situações banais da vida, colecionando tiradas de rolar de rir. Depois desse livro, o velho Umberto, do qual eu já era fã de carteirinha, conseguiu ganhar ainda mais a minha modesta admiração. Isto porque me reverencio diante das altas inteligências – científicas, literárias, filosóficas –, mas detesto intelectual chato, emburrado, ensimesmado, no alto do pedestal e distante das dores e humores de nossa vida comum. Se o conhecimento, o acúmulo da sabedoria e as ricas experiências do cotidiano não nos levarem aos destinos do desprendimento e do bom humor, há algo errado com o nosso GPS.

Antes de chegarmos à última história, comprovamos que o verdadeiro aprendizado desta existência é extraído das situações banais, do dia a dia: pequenos encontros, casos fortuitos, problemas inesperados, dias comuns – e não dos angustiantes mergulhos interrogativos em torno do “quem sou”, do “de onde viemos” e do “para onde vamos”. Umberto, com seu salmão incômodo na bagagem, chegou feliz ao seu destino, fazendo piadas dos mistérios da vida.

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