Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Onde e como

Publicado em: Qui, 21/12/17 - 02h00

No passado, um dos testes mais difíceis para um inglês era tirar licença de taxista profissional. Não me refiro aos chamados mini-cabs e alternativos que, meio na clandestinidade, concorrem com os tradicionais táxis londrinos. Falo do oficial, o clássico London Cab, modelo FX-4, fabricado pela Austin Motor Company Limited, carro que compõe a paisagem da capital britânica e virou cult.

Como a Inglaterra é um país meio esquisito, a esquisitice também alcança o serviço e os referidos veículos. Por exemplo: gritar, “táxi, táxi”, na rua em Londres, era contra a lei e sujeito a multa, não sei se ainda vale. Para pegar um táxi pretinho você deveria dirigir-se aos pontos de parada sinalizados. Motoristas dos London Cabs podem se negar a carregar qualquer indivíduo aparentando ter uma doença contagiosa. Suponho que dirão, educadamente:

– Sorry, sir; please keep off my cab!

Também não estão sujeitos a multas somente por ultrapassar o limite de velocidade. Dirigir devagar demais pode gerar uma canetada do guarda. E a melhor de todas: o espaço vazio ao lado do taxista, previsto numa antiga lei de 1629, deve ter as dimensões obrigatórias para conter... uma pessoa? Não, um saco de feno!

Pois bem: falava eu da prova rigorosíssima para a licença do taxista londrino. Dois examinadores carrancudos entravam no carro e diziam apenas um endereço – rua, número e bairro. O motorista que se virasse, sem consultar nenhum livrinho. O desafio se estendia por mais alguns endereços – creio que cinco – e, se ele acertasse, seria habilitado. Se não conhecesse muito bem a cidade, de memória e experiência, levava pau. Depois surgiu o GPS e tudo mudou. O avanço da tecnologia engoliu a tradição e, felizmente, simplificou a vida dos candidatos.

Porém há outra atividade que ainda conserva características similares e sem direito a GPS: a de gondoleiro em Veneza. Trata-se de uma verdadeira máfia, grupos familiares que transmitem os cobiçados cargos de pai para filho. A profissão é vitalícia e bem remunerada; logo, as vagas são poucas, disputadíssimas. Há rituais secretos de iniciação; intrigas, desafetos e traições, tudo bem à italiana. Partindo com os examinadores da ponte de Rialto, o candidato a gondoleiro deve exibir domínio total da embarcação – serenidade, destreza, gentileza, equilíbrio e segurança no labirinto aquático que é Veneza. Isso faz jovens se prepararem arduamente para percorrerem os canais da Sereníssima em curvas perfeitas, sem ralarem a brilhante pintura negra dos cascos em alguma beirada.

Pensei nessas coisas enquanto passeava hoje, com meu cachorro, pela vizinhança. Aos olhos dos estranhos, sou o morador antigo típico – logo, conhecedor das ruas. E assim, não rola um dia sem que eu seja interpelado por um desorientado caçando um endereço, sempre afobado. Muitos consultam seus mapas nos celulares, mas nem sempre funcionam. E aí recorrem ao velho contato humano, hoje meio em desuso.

Belo Horizonte é fraca em nomes de ruas. Faltam muitas placas e, quando existem, pedem manutenção. Algumas ainda resistem. Mesmo assim, tem gente que simplesmente ignora sua função de indicação mais óbvia e antiga, e nem as consideram.

Outro dia, na praça da ABC – cruzamento entre Getúlio Vargas e Afonso Pena – uma mocinha parada na faixa de pedestres sob uma das placas remanescentes onde lê-se “Av. Afonso Pena” perguntou-me:

– Moço, sabe onde fica a avenida Afonso Pena?

Apontei para a placa, para o chão, fiz cara assustada e confidenciei-lhe:

– Xi... Você está pisando nela!

Há outros mais perdidos, perguntando-me sobre endereços que, depois de algum tempo, descobrem estarem situados em Nova Lima, Brumadinho ou Betim. A de hoje foi antológica, inacreditável. Parou um carro de uma empresa aplicadora de gesso; estavam indo realizar o serviço nas redondezas.

– Bom dia, moço...

– Ôpa, tudo bem?

– Estamos procurando um endereço...

– Diz aí...

Ele coçou a cabeça:

– É um prédio assim grande, cheio de janelas azuis, numa esquina... Sabe onde é?

– Peraí... Não tem o nome da rua, número, nada?

– É por aqui... Fui lá semana passada fazer o orçamento e esqueci onde era.

Neste caso, lamentavelmente, não pude ajudá-lo. Assim como vocês, devo conhecer uma centena de prédios de janelas azuis. E prédios de esquina, então, nem se fala. Que pena.

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