Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Quando mertiolate ardia

Publicado em: Qui, 14/02/19 - 02h00
Posso afirmar que algumas das crônicas que mais gosto foram escritas sob certo estresse causado pelo prazo apertado, tempo esgotando no jornal, correrias | Foto: Hélvio

Os orientais têm uma ligação fortíssima com o mar e seus frutos – peixes, algas, moluscos. A busca incansável de alimentos fez com que um japa corajoso (e faminto...), lá no passado, tivesse o trabalhão de abrir a primeira ostra, tomar coragem diante daquela coisa repugnante e – chlept! – botá-la goela baixo. Pronto: virou comida.

Um amigo sushiman contou-me um caso interessante; este mais recente. O aumento do consumo mundial de sushi passou a exigir a criação de peixes em cativeiro. O que vinha unicamente das redes de pesca não era mais suficiente. Naquele jeito cuidadoso dos japoneses, construíram lá gigantescos tanques de água salgada que simulavam o movimento das ondas, com temperatura controlada e demais características do oceano. À primeira vista, funcionou bem. No entanto, os degustadores e sushimen de primeira classe, dotados de paladar apuradíssimo, torciam o nariz ao provar esses peixes. Devem ter dito:

– Diferente, né? Falta qualquer coisa aqui, né? Um gostinho assim-assim, né?

De fato, o sushi feito com o pescado tradicional tinha outro gosto. Algo indescritível, sutil, é verdade; mas essencial para os exigentes chefs e gastrônomos japoneses. Alarmados, os produtores gastaram mais dinheiro em novas pesquisas. Revisaram a qualidade da água, pH, salinidade, insolação, temperatura, sei lá mais o quê. Não resolveu.

Até que um dos criadores percebeu que faltava um elemento naqueles tanques: os predadores. Isso, os peixes mais bravos que, em alto-mar, atacavam os menores. Biólogos constataram que a luta pela sobrevivência tornava os peixes do criatório mais atentos, espertos – por conta da adrenalina ou de reações químicas complicadas (coisas que só um neurologista competente como dr. Luiz Roberto, que cuida das minhas sinapses, pode explicar). Final da história: puseram uns predadores nos tanques, os peixes ligaram o modo turbo, e o sabor do sushi chegou ao nível ideal.

Estou contando essa história porque acho que certa dose de estresse na vida faz bem. O que move o atleta para bater o recorde? Ou o estudante para passar no vestibular? Ou a bailarina para acertar aquele passo que já errou mil vezes? No meu caso, posso afirmar que algumas das crônicas que mais gosto foram escritas sob certo estresse causado pelo prazo apertado, tempo esgotando no jornal, correrias.

Um conhecido mestre japonês de artes marciais daqui recusava muitos alunos brasileiros por conta de um aparente capricho. Ora: o aprendizado da arte marcial (e de outras artes mais suaves) envolve estresse mesmo; tombos, dores, canelas roxas. E o mestre grita muito, emite resmungos guturais no melhor estilo oriental. Por isso, já na chegada, ele advertia os papais e mamães daquelas crianças que vestiam o quimono pela primeira vez:

– Eu gritar muito, né?! Eu muito bravo, né?! Se mamãe não gostar, não aceito aluno, né!?

A vida – a real, não a dos games – não é brincadeira; tem horas que o bicho pega. Porém, há hoje certo exagero e demonização das adversidades, uma busca ansiosa por um caminho sempre florido, perfumado e sem percalços – de fato, uma grande ilusão. As novas gerações vêm recebendo paparicos demais da parte de seus pais, preocupadíssimos em “não traumatizar” seus filhos com isto ou aquilo. Esse exagero de proteção já rendeu alertas de médicos e educadores. Estaremos criando uma geração de bobocas incapazes de enfrentar as durezas da vida sozinhos? Qualquer dorzinha, qualquer obstáculo, qualquer dificuldade agora vira um terror?

O assunto rolou outro dia numa mesa de almoço com amigos. Um deles, calejado pela dura jornada de seus quase 70 anos, soltou a frase lapidar durante o cafezinho:

– Tô nem aí pra estresse, pressão, barra-pesada. Encaro tudo. Sou do tempo em que mertiolate ardia.

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