Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Rap cubano

Publicado em: Qui, 15/07/21 - 03h00

 

Maykel Osorbo é um artista cubano quase desconhecido. Com 37 anos, o músico teve tempo suficiente para se aborrecer com filas diárias, aguardando a vez de pegar um pacote de açúcar, pães de farelo suspeito e um litro de leite raleado – presentes da ditadura comunista que há 60 anos massacra o povo. Trinta e sete anos também é tempo bastante para encher o saco de alguém indignado com o que está vivendo e reagir.

Mas, reagir, como? Não existe liberdade alguma em Cuba; somente a obrigação de apoiar, na marra, a cartilha martelada nas crianças de lenços vermelhos ao pescoço. Quando crescem, duas opções: ou se tornam membros da gigantesca burocracia ditatorial, das milícias que perseguem, torturam e matam dissidentes - ou caem na real e na mira da polícia.

Zoando o slogan da velha revolução - “Pátria ou Morte!” - Maykel Osorbo preferiu a vida e deu este tom ao rap criado com seu grupo. O clipe foi gravado por artistas latinos; vale a pena ver no Youtube. A música é ótima; melodia e ritmo afinados com o mais puro estilo caribenho. Maykel preferiu a arte sem censura, compor suas canções sem medo, viajar para onde quiser, ganhar dinheiro com seu talento – como qualquer artista do mundo - sustentar sua família, viver em paz.

A letra de “Patria Y Vida” narra o sofrimento daquela gente: /sessenta anos trancados/nas panelas, não há comida/dizem que Varadero é um paraíso, enquanto as mães choram os filhos que partiram/chega de derramamento de sangue por pensar diferente/cantamos a história verdadeira e não a mal contada/chega de mentiras, meu povo exige liberdade e não mais doutrinas/. Bastaram versos assim para atiçar o mecanismo repressor. Maykel Osorbo está preso na cidade de Pinar del Rio, acusado de resistência à detenção, desacato, agressão e pode ainda perder a guarda da filha. Incomunicável por quase um mês, conseguiu finalmente denunciar sua prisão aos amigos do movimento San Isidro.

Na semana ocorreram manifestações em várias cidades da ilha, talvez as maiores desde a tomada de poder pelos comunistas em 1959. Jovens e adultos cantaram “Patria y Vida” enquanto a polícia descia o cacete. Já pode ter morrido gente, mas é difícil saber. O povo aproveitou e saqueou as minguadas prateleiras do comércio estatal de alimentos. Repórteres foram surrados e presos. A blogueira Dina Stars participava de uma entrevista na TV espanhola quando a polícia entrou no quarto e levou-a. Prisão ao vivo.  

O ditador Miguel Diaz-Canel tentou mobilizar suas milícias e apoiadores via rádio e TV. Atribui a revolta não à crônica falta de alimentos, remédios, energia elétrica, combustíveis - mas à “culpa dos youtubers que manipulam as emoções da população através das redes sociais”. Se esqueceu, como sempre, da manipulação sistemática de mentes – e sobretudo de estômagos - perpetrada há décadas por Fidel Castro e seus sucessores. É como disse certa comentarista: “socialismo é bom, o povo é que ainda não aprendeu a passar fome”.

Jane Fonda afirmou que a Covid-19 era um presente de Deus para a esquerda, mas a pandemia também grassa em Cuba, infelizmente. O lamentável (e asqueroso) recado da atriz sugere que o mundo se dividiu em dois grupos: alguns, lá no fundo, torcem pela explosão do vírus e o aumento das mortes. Já outros creem num amanhã melhor, insistem na continuidade da vida, no agir positivo, na esperança - como Maykel Osorbo e sua turma.

Um rap, uma canção, um grito de socorro é quase nada, mas inspira essa nova geração indignada que não vai se calar.

                                                              

                                                               

 

 

 

 

                               

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