FERNANDO FABBRINI

Sofrências

Ser feliz não está com nada

Por Da Redação
Publicado em 11 de novembro de 2021 | 03:00
 
 

Muito triste o falecimento da jovem cantora no acidente aéreo. Repetiu-se aquele formato atroz que marcou a trajetória de alguns artistas: em plena juventude, agendas lotadas, fama, fortuna e, de repente, um trágico ponto final. Por uma questão de preferências musicais, não tenho hábito de escutar sertanejos e assim não conhecia a Marília Mendonça. Contaram-me que seu talento e sua voz poderosa garantiram sucesso merecido, dispensando apelações midiáticas vergonhosas que certos “artistas” utilizam.

Criado sob os acordes do bandolim de meu pai e seus chorinhos, curti bossa nova, clássicos, jazz, rock, Beatles, Noel Rosa, Genesis, Cartola, Pink Floyd, MPB – estilos musicais diferentes. Apesar disso, por curiosidade e dever de ofício de cronista, passei um tempo no Youtube esta semana ouvindo sucessos sertanejos da moda e tentando captar os segredos dessa comunicação espetacular com uma parcela do público. Ao escrever a coluna, não tive dúvidas: o fenômeno da sofrência exige reflexões.

Desde os trovadores medievais a música vem sendo saída para externar, entre outras coisas, as agruras de amores desventurosos. Tormentos do coração inspiraram canções no mundo inteiro, todo o tempo, e deram-nos obras belíssimas. Afinal, quando abandonados nos porões da solidão, é confortante saber que nossas dores não são originais; temos colegas nas mesmas angústias, questões mal resolvidas e saudades pungentes. Somos humanos e sujeitos a isso, ora.

As coisas doem, mas passam. Agora: a música e a vida também são feitas de grandes e pequenos prazeres; lugares bonitos e lembranças gostosas, afetos verdadeiros, encontros felizes, danças, paqueras, abraços, beijos, carinhos, alegrias, surpresas de corpo e alma. Presumo que um artista seja sensível ao “lado bom” também. E foi aí que percebi na sofrência um viés meio esquisito.

Quase a totalidade desse repertório despeja nos microfones desabafos trágicos e com requintes de crueldade; alguns até... ridículos, sem dúvida. Claro: trata-se da sofrência assumida, o neologismo já diz. Numa breve pesquisa constatei que das 16 sertanejas que ouvi 13 citavam traições, adultérios, paixões funestas, abandonos, maus-tratos, raivas contidas, sufocos, ingratidões, remorsos – tudo isso coroado de chifres abundantes, de todos os formatos. Ufa!  

Imagino que as gravadoras, que não são bobas, criaram um novo marketing baseado na morbidez e no bizarro. Até que ponto essa tendência de lambuzar-se na tristeza e na pieguice não explora e contribui para o reforço da alarmante depressão dos jovens de agora? Afogando seus desencantos na cerveja – muita! -  parece que virou moda mergulhar na fatalidade, no conformismo covarde que facilita o controle das pessoas. Estarão, no fundo, dóceis, domados e lastimosos, aceitando tudo sem reagir? Entregam seus celulares aos bandidos e acham normal? 

Viver inclui muitos sofrimentos e dessa lista constam as inevitáveis dores-de-corno. Porém, diante dos “nãos” que tomamos na cara, uma pitada de autoestima, de vontade de sair da pior faz toda a diferença e, com certeza, ainda ajuda na criação artística. No entanto, escolher sempre o lado triste, o grotesco e o baixo-astral como inspirações soa forçado. E tomem letras deprimentes, desejos de vingança, maldições, cascatas de lágrimas. É de chorar, mesmo.

“Quando a tristeza chegar, abra a porta e deixe-a entrar. Mas não sirva cafezinho.” Assim é a vida: uma sequência de altos e baixos, dores, prazeres, alegrias e tristezas que se sucedem até o infinito. Sobre estas não temos controle algum. Resta-nos surfar nas ondas da impermanência, nesse fluxo interminável – e não parar no tempo, agarrar-se às feridas que nos marcaram e fazer delas um altar. Ou, pior: uma prisão.