Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Terríveis infrações

Publicado em: Qui, 30/05/19 - 03h00
Fernando Fabbrini | Foto:

Um dia bonito, típico de maio. Os garotos resolvem dar um rolê com as patinetes. Pegam as primeiras que veem, tem pra todo lado. Brincando, aceleram pela calçada:

– Quem chega primeiro ali na esquina, véi? – grita um.

Dona Maria terminou de passar pó de arroz no rosto envelhecido, mas que conserva traços bonitos. Põe o colar, presente da filha. Ajeita a gola da blusa numa última olhada no espelho. Confere os documentos; a identidade e o cartão do INSS; devolve-os à bolsa. Dona Maria vai receber a aposentadoria; trocados que pagam – pelo menos – os remédios para pressão alta.

Dona Maria aperta a tecla que abre a porta envidraçada do prédio. Tlec! Com o cuidado de sempre, puxa de volta a maçaneta e tranca a porta. Tlec! No seu passinho lento, dona Maria desce os degraus da portaria.

Bocão – um dos três garotos – é fera, adora patinete. Acelerando pela calçada, Bocão seria o primeiro a chegar na esquina e a zoar os outros dois. Bocão é um cara grande; deve pesar quase cem. Já dona Maria – nos seus setenta e tantos anos – parece um fiapo solto ao vento. A lentidão de seu passo não é só uma questão de idade. A artrose do joelho esquerdo também inferniza sua vida.

Bocão vem veloz, quase rente à parede, e dona Maria desce ao passeio. Tudo acontece num segundo. O choque atira dona Maria primeiro contra a grade do prédio. Aí ela cai na calçada, feito um galho seco. Bocão ainda conseguiu equilibrar-se, apesar do impacto. Quando olhou para trás, lá estava a idosa no chão, gemendo e sangrando pelo nariz.

– Vaza, véi! – gritaram os colegas.

Bocão vazou. Patinete não tem placa. Ninguém ia saber. O vizinho do 201 ouviu o barulho, os gritos, desceu correndo. Foi ele quem chamou o Samu e telefonou para a filha da dona Maria, avisando.
Dani vem puxando sua mochila de rodinhas pelo passeio. Acabou de sair da escola. Esperta, ela caminha dois passos à frente da mãe, que fala ao celular. A calçada está cheia de gente naquele horário; crianças voltando da escola; pessoas indo pro almoço. Dani aperta o passo de olho na vitrine onde tem aquela pulseira legal que ela viu no Instagram.

Bruno começou a usar as patinetes na hora do almoço. É prático. E mais rápido para chegar ao restaurante, dispensa o carro. O problema é que não existem ciclovias na cidade. Mas existem calçadas, e Bruno sabe que todo mundo anda de patinete é na calçada mesmo. E patinete não tem placa. E ninguém se importa nem fiscaliza, e o Brasil é assim mesmo, uma zona.

Bruno acabara de atravessar a rua e subir outra vez na calçada quando Dani mudou de rumo, de repente, para olhar a vitrine. Apenas um pouquinho à esquerda, coisa de nada. Não deu tempo de desviar. Bruno ainda freou, mas pegou Dani de lado, os dois rolaram no chão. A mãe de Dani berrou, em pânico. A turma do bar da esquina e os taxistas do ponto vieram correndo.

– Seu babaca! Machucou a menina!

Bruno sentiu o primeiro chute. Tentou se levantar, ia pedir desculpas, socorrer Dani. Bruno não é do mal. Como também não são do mal os taxistas e o pessoal do bar da esquina. Porém, no fundo, todos acham que o Brasil é uma zona mesmo. E que aqui não tem ordem, nem lei, nem justiça. Por isso, encheram o Bruno de porrada.

Não longe dali, fiscais e guardas, empenhados na segurança dos cidadãos e transeuntes, multavam dezenas de veículos estacionados irregularmente – essas terríveis infrações que exigem pronta e enérgica intervenção do poder público.

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