Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Tremores nacionais

Publicado em: Qui, 10/08/17 - 03h00

A ausência de terremotos em território nacional é um fenômeno que me persegue desde o grupo escolar. Foi a Ana Lúcia, aquela colega moreninha de rabo-de-cavalo, quem me iniciou, sem saber, nos mistérios profundos da Mãe Gaya. Nas comemorações de um Sete de Setembro, fechando com ufanismo precoce seu discurso no pátio, disse ela, sob os olhos marejados da professora:

– O Brasil, nosso torrão, é abençoado por Deus porque não tem terremotos!

Voltei exultante para casa. Como ainda não tinha me dado conta de fato tão auspicioso? Enquanto outros povos – gregos, italianos, hunos e visigodos, por exemplo – ficavam à mercê dos terríveis abalos, nós, crianças privilegiadas de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, podíamos brincar sem medo, chutando bolas de meia sobre o solo seguro da rua do Ouro e arredores. De vez em quando, eu ainda pulava com força sobre o terreiro lá de casa para testar e apurava os ouvidos. Perfeito: nada se movia na sequência.

Virei gente grande, continuo a me lembrar da Ana Lúcia e padeço com as notícias – reais – dos inúmeros terremotos recentes na China, Itália, Chile, por aí. Minha coleguinha estava certa, o que é terrível. A nação brasileira é dotada de uma solidez à prova dos piores abalos sísmicos. Mexam à vontade, experimentem derrubar o que está errado, sacudam os braços, gritem. Bobagem: nossas estruturas velhacas são assaz flexíveis. Passado o primeiro impacto, retirada a pressão e baixada a poeira, elas retornam rapidamente à posição inicial, como os modernos edifícios japoneses.

Continuaremos incorrigíveis e superficiais nas mudanças, deitados eternamente nessa maldição musical que balança, balança, mas não cai? Nunca senti o chão deste país tremer de verdade sob meus pés (exceto de modo figurado, sobrevivendo a certos abalos que tiveram meu coração como epicentro. Mas isso não conta; é apenas íntimo e pessoal).

Talvez por tudo isso, em noites de lua cheia, deitado em minha rede sob a mangueira, sou tomado por um sono irresistível. E lá vem, de novo, o sonho recorrente do fantástico choque das placas tectônicas que se espremem logo aqui embaixo. É sempre igual o tal sonho, variando apenas na intensidade e no número de figurantes, em relação direta com o que comi no jantar.

O enredo é mais ou menos assim: a noite segue morna e comum, quando o noticiário da TV mostra com exclusividade mais um escândalo-roubalheira-sacanagem de dimensões continentais. Nesse ponto, de repente, a coisa acontece. Revoltada com o descaso, enfarada com a safadeza reincidente, enjoada com o desrespeito, a terra brasileira manda dizer que não aguenta mais. Então, em nome dos indignados que suportam tudo calados, a nação retorce as entranhas e regurgita seu asco medonho. Do Oiapoque ao Chuí, tudo começa a sacudir.

Afundam as cuias gêmeas do Congresso, sepultando engravatados sob montes de entulho. Caem as alegorias patrocinadas das escolas de samba e os medalhões de ouro dos bicheiros. Rolam traficantes e os policiais safados que os protegem. Com precisão cirúrgica, pedras voadoras despencam sobre as cabeças daqueles cruéis com animais, bem como nas dos pedófilos, nas dos marqueteiros e outros que se enriquecem na lama.

Intelectuais simpatizantes de Maduro são envoltos num redemoinho providencial e despejados – com fome – numa fila de pão quilométrica em Caracas. Motoristas bêbados que voam a mil por hora, matam, pagam fiança e saem tranquilamente pela porta da delegacia também não escapam: são atropelados por imensas carretas Scania-Vabis. Desmancham-se gabinetes oficiais inúteis, esfarelando burocratas parasitas e suas bandejas de café. Nos céus, raios espetaculares atingem jatinhos que transportam operadores e lobistas de uma obra monumental para outra.

Bem-vindo, caos redentor! Assisto a tudo impassível e com certo sentimento de satisfação inexplicável. É claro que, na condição de espectador, após o terremoto sobrevivo ao lado de pessoas queridas. Abraçamo-nos, de alma lavada, e dançamos, felizes, sobre as ruínas. Livres do passado, começamos a construir um Brasil novo, original, muito diferente daquele que tentam empurrar-nos goela abaixo com a ajuda de publicidade oficial enganadora, retórica furada e blá-blá-blá demagógico.

Quem disse que eu não posso sonhar com um abalo sísmico dos bons? Afinal, do roteiro à direção, passando pelos efeitos especiais, o projeto é todo de minha autoria. E em minha catástrofe mando eu, ora.

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