Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Vizinhança porca

Publicado em: Qui, 31/12/20 - 03h00

Perto de minha casa há um lava-jato. No Brasil da corrupção, onde o termo lava-jato virou sinônimo de bandidagem, esperava-se que esse também fosse um poço de sujeira. Mas, não: o dono é caprichoso. Mantém a área e a calçada em frente bem limpas. Há um pequeno jardim que, antes, nas mãos de antigos donos, virara uma lixeira a céu aberto, acumulando copos plásticos, garrafas, restos de marmitas e as máscaras da pandemia. Agora, os novos proprietários limparam tudo; arrumaram o canteiro com grama nova, plantas e muito carinho. Até um pneu usado foi pintado e artisticamente disposto como vaso de folhagens coloridas. Desde então, segundo percebo, ninguém mais se atreveu a jogar porcarias ali.

Um pouco à frente está instalado um grande hospital, um dos maiores e mais famosos da cidade. Na rua que dá para os fundos há um grande gramado. E nele, por alguma razão misteriosa, vizinhos mal-educados se acham no direito de despejar lixo de toda origem, forma, composição e dimensão. Vê-se desde livros usados até fogões velhos e enferrujados, além de montanhas de dejetos sanitários repugnantes que não me encorajo a listar. E máscaras, toucas, todo o aparato virulento de nossa época.

Fizemos contato com a administração do hospital. Segundo disseram, não adianta remover diariamente a porcariada que vizinhos jogam ali. Na calada da noite, surge nova pilha de sucata e sujeira. Sem dúvida, a coisa vem da vizinhança mesmo. Gente de perto. Cidadãos de classe média que, por seu livre arbítrio, decidiram fazer do gramado um lixão. E pronto.

Há tempos intriga-me a diferença entre aqueles que cuidam, que limpam, que fazem bem feito – e a estranha categoria de pessoas que procedem exatamente ao contrário. Partindo do princípio que, em ambos os casos, estamos considerando indivíduos com um mínimo de educação e informação – e não trogloditas – pergunto-me: serão, mesmo, representantes da mesma espécie humana a qual pertencemos? Ou, por acaso, tratam-se de invasores selvagens adeptos de uma diabólica estratégia de dominação do planeta pela sujeira?

Se são da vizinhança, como comprovado, certamente trafegam por ali – assim como seus familiares – indo e vindo pelas trilhas que eles próprios cobriram de lixo. Será que não se sentem mal contemplando o resultado de sua obra asquerosa? Creio que não: fazem do seus montes de lixo um álbum de recordações nostálgicas:

- Puxa, querida! Sabe aquela nossa antiga privada rosa-choque? Ainda está lá onde botamos, no gramado, já faz um mês... Um pouco sujinha, mas... Que saudades dela!

- Vi também meu secador de cabelos queimado! Gostava tanto dele! E as fraldas usadas da nossa filhota...

Pois é, até quando e de que forma poderemos conviver com diferenças tão gritantes entre vizinhos? Uns, limpam e conservam. Outros, não estão nem aí – e contribuem para a paisagem deprimente.

Pode ser que o diabo não seja tão feio quanto se pinte. Mas nos romances e na imaginação popular, o inferno é sempre um lugar sujo, calorento e fedorento. Sem falar na fumaça, na desordem, no lixo pelos cantos, no choro e ranger de dentes. Como é possível ser feliz morando num lugar assim?

Um bom 2021 a todos, com menos sujeira – em todos os sentidos.

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