CAROL RACHE

A distorção por trás da positividade e gratidão

'Não há nada errado com o olhar positivo. Mas a finalidade com que é usado pode ser distorcida.'

Por Carol Rache
Publicado em 14 de maio de 2021 | 03:00
 
 

Positividade e gratidão são posturas que merecem ser cultivadas. Contudo, são abordagens que podem ser extremamente distorcidas quando usadas sem prévia autoinvestigação.

Explico.

Quando, diante de um evento desafiador, nos propomos a mirar no que a situação pode nos entregar de positivo e escolhemos ser gratos “apesar dos pesares”, corremos o risco de escapar do desconforto de forma rápida e automática, antes mesmo de deixa-lo contar o que veio evidenciar.

Não há nada errado com o olhar positivo. Mas a finalidade com que é usado pode ser distorcida.

É saudável perceber que a vida não joga contra nós e que, mesmo nos contextos mais adversos, existe sempre uma oportunidade de crescimento. E, sim, para conseguir cultivar esse olhar, é necessário ter a habilidade de direcionar nosso foco para além da dor e da frustração. Quem não o faz costuma se demorar muito na dor e transformá-la em sofrimento. Não é o melhor dos mundos.

Porém, se diante de um problema colocamos correndo nossos óculos de lente cor-de-rosa a fim de rapidamente desfazer os incômodos internos desencadeados pelo evento em questão, perdemos a oportunidade de descobrir qual parte de nós nos levou até aquela cena.

Não é porque tudo tem um lado positivo que devemos ignorar nossas nuances que co-criaram, atraíram ou alimentaram a situação-problema. Isso é fugir da auto-observação. É criar argumentos lúdicos para evitar o confronto com as próprias sombras. É ignorar que somos origem das questões que nos envolvem. É não ter disponibilidade para sentir o desconforto.

Perceber a vida através de óculos cor-de-rosa pode nos deixar alienados para a verdadeira cor dos fatos. Por isso é sempre mais sensato se permitir sentir alguns dissabores e investigá-los, antes de usar logo o brigadeiro como acalento para o paladar.

É perigoso, também, olhar no espelho através dos óculos cor-de-rosa. Será que temos tanto medo das nossas imperfeições que precisamos de filtro? Conseguimos, ou não, tirar as lentes coloridas e perceber nossas nuances sem cores adicionadas artificialmente?

A prática da positividade sem autoinvestigação patrocina a autoidealização. Fica muito fácil carregar discursos sempre coloridos e ignorar nossas partes que ainda se manifestam em preto e branco.

Extremos são sempre confortáveis e nos dão uma sensação ilusória de segurança. A ideia de que “ou somos bons, ou sou maus” aniquila a verdade sobre nós. Não somos nem uma coisa, nem outra. Somos um sistema complexo de cores vibrantes que se misturam com rascunhos pouco elaborados.

A positividade e a gratidão precisam ser praticadas no caminho do meio, e não como estratégia de fuga dos nossos incômodos. Afinal, mesmo a mais moderna das lentes não foi feita para ser usada de forma permanente.