Flavia Denise

Flávia Denise escreve todas as segundas-feiras no caderno Magazine de O TEMPO

Assédio e paquera

Publicado em: Seg, 15/01/18 - 02h00

“Acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana para ser feliz”. A frase da jornalista e escritora Danuza Leão, publicada numa coluna do jornal “O Globo”, circulou violentamente na última semana.

As declarações causaram impacto não pela mensagem, que não é nenhuma novidade. Somos parte de uma sociedade que há séculos sustenta esse tipo de opinião como regra. O impressionante é isso vir dela, uma mulher que certamente viveu abusos típicos do machismo e, mesmo assim, continuou pensando e trabalhando, chegando a ganhar dois prêmios Jabutis. A opinião causa ainda mais estranhamento por ser divulgada numa época em que discussões sobre machismo, masculinidade tóxica e assédio reformulam comportamentos sociais. Beira o assustador ver uma mulher de renome emular um discurso de opressão.

E não é só ela que defende o assédio masculino. A lendária atriz Catherine Deneuve, ao lado de cem autoras francesas, assinou um abaixo-assinado em defesa do que entendem ser um direito masculino: dar em cima de mulheres.

A reação a essas declarações foi como o esperado. Da confusão (“não é possível que elas realmente estejam falando isso”) à raiva (“elas estão loucas e merecem mesmo ser assediadas”), houve, na minha opinião, um cenário de extremo desentendimento e desinteresse acerca da motivação de falas como essas, que vai além de uma incapacidade de compreender as discussões contra o assédio e o estupro.

A chave para aprofundar essa discussão está na observação de que há um choque de gerações. Danuza, Catherine e outras que defendem esse ponto de vista foram símbolos sexuais numa época em que a mulher ser livre para receber e aceitar convites íntimos era transgressor. Só imagino o quão confuso e puritano pode parecer para elas a proibição de uma prática que entendem ser um símbolo de sua liberdade sexual.

Só que a liberdade sexual de outras décadas está muito distante da realidade atual. Sim, gerações passadas de mulheres lutaram para poder receber e aceitar convites, mas não tinham liberdade de fazê-los. A iniciativa era exclusiva ao homem. O desejo inicial pertencia unicamente ao homem. À mulher restava a possibilidade de reagir. De aceitar ou negar. E, como sabemos bem, a responsabilidade de se fazer bonita e atraente para suscitar esse desejo masculino.

Felizmente, a situação vem mudando nas últimas décadas. Mulheres começam a lutar pelo direito de não transformarem-se em bonecas em nome de encontro romântico e sexual. De não precisar fingir que o interesse não lhes pertence. De não limitarem-se ao momento do desejo alheio.

Isso significa que o “dar em cima”, um momento de liberdade para gerações passadas, passa a ser pautado por outras condições. Quando garotos e homens eram incentivados a desconsiderar o “não” por saber que as mulheres não podiam dizer “sim” impunemente, o assédio era regra. Com a mudança da premissa, precisamos de novos comportamentos masculinos.

Como em toda transição, as regras ainda não estão claras. Isso ocorre porque ainda são negociadas (entre casais e entre gerações). Mas permita-me deixar uma coisa clara para quem vê censura na atual onda feminista. Não há proibições de paquera. Há um esforço em diferenciar o flerte do assédio. E o fato de esses dois poderem ser confundidos é a prova cabal de que a discussão é necessária.

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