FLÁVIA DENISE

Poesia em ritmo

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 17 de outubro de 2016 | 03:00
 
 
Acir Galvão

“Ei, senhor tocador de tamborim, toque uma canção para mim/ Na aguda manhã desafinada eu o seguirei/ Embora eu saiba que todo império retornou ao pó/ Varrido de minha mão”. Esses versos, ao lado de outros tantos, renderam ao cantor e compositor Bob Dylan o Nobel da Literatura na semana passada. A decisão causou um certo estranhamento. Afinal, letrista é escritor?

Quem tem vontade de escrever ou decide se enveredar pelo campo sabe que assumir a alcunha de “escritor” não é uma decisão leviana. Em qual momento uma pessoa pode ser considerada escritora? Basta rabiscar algumas frases no papel? É preciso publicá-las em um blog, ao menos? Para muita gente é necessário alguma validação (como a de uma editora) para que aquele que escreve possa se considerar escritor.

Com mais de 40 álbuns lançados, todos recheados de versos compostos de associações harmoniosas de palavras e ritmos, me parece óbvio que Dylan não só merece ser chamado de escritor como é um poeta. Poeta esse que tem tanta afinidade com o ritmo que veicula suas criações em canções.

Vale lembrar que o Brasil também tem uma grande tradição de poetas apaixonados pelo ritmo. Alguns bons exemplos são Cazuza (“Pra que usar de tanta educação/ Pra destilar terceiras intenções/ Desperdiçando o meu mel/ Devagarzinho, flor em flor/ Entre os meus inimigos, beija-flor”), Gilberto Gil (“A paz/ Invadiu o meu coração/ De repente, me encheu de paz/ Como se o vento de um tufão/ Arrancasse meus pés do chão/ Onde eu já não me enterro mais”) e Criolo (“São Paulo é um buquê/ Buquês são flores mortas/ Num lindo arranjo/ Arranjo lindo feito pra você”).

A literatura é a forma mais direta de criar uma narrativa. É o encadeamento de palavras que possibilita aos seres humanos contar suas histórias – mesmo quando há grandes distâncias físicas ou temporais. E, a partir daí, é possível criar outras muitas formas de arte. Ao se acrescentar sons, haverá a música. Transformando a narrativa em imagem, criam-se as artes plásticas. Para chegar ao teatro é um salto. Mas tudo começa com uma narrativa.

Levando tudo isso em consideração, a questão não é se Dylan, como poeta, merece um Nobel de Literatura (a resposta é um grandíssimo “sim”). A questão é se faz sentido para o prêmio, até então reservado para quem lida com o difícil trabalho de colocar palavras num papel e, sem a ajuda de outros recursos, narrar histórias, abrir suas portas para os poetas do som.

Em termos de criação poética, a resposta é “sim”. Faz muito sentido. Mas já existem inúmeros prêmios e possibilidades de reconhecimento para os letristas, compositores, autores de música e afins, como o Grammy, os discos de ouro oferecidos pela indústria para quem atinge determinada vendagem e uma centena de troféus, estatuetas e placas promovidos por entidades que vão de associações de críticos à MTV. Para os poetas da palavra, as opções já são bem mais restritas, e o Nobel era, até então, o principal prêmio de quem se dedica à narrativa em livros. Talvez seja melhor manter entre eles as poucas agraciações que a literatura tem.