Flavio Saliba

Sociólogo e professor da UFMG, Flávio Saliba escreve quinzenalmente nas sextas-feiras em O TEMPO

Não há luta ideológica no país; há, sim, luta pelo poder

Imunização cognitiva e radicalismo político

Publicado em: Sex, 14/06/19 - 03h00

Na verdade, não há luta ideológica no país. Há, sim, luta pelo poder a qualquer custo. As ideologias de direita ou de esquerda funcionam como meros guarda-chuvas para um conjunto mais ou menos homogêneo de ideias, crenças e interesses materiais que, na luta pelo poder, promovem a intolerância e o caos social.
O guarda-chuva da direita abriga os discursos do livre mercado, do Estado mínimo, do descrédito nas políticas ambientais, da autodefesa das armas de fogo e, sobretudo, o dos bons costumes ditados pela religião. O da esquerda abriga os discursos do combate às desigualdades sociais, de defesa dos direitos humanos, do Estado intervencionista e provedor e, no limite, o de uma “democracia” que favoreça a ascensão ao poder, pelo voto, das hostes socialistas. 
Como já disse FHC, nunca houve no Brasil uma direita clássica, democrática e pautada pelo princípio da alternância no poder. Aquilo que a esquerda denominava “direita” não passava de um bando de empresários e banqueiros ricos, políticos fisiológicos e, não raro, corruptos. Aquilo que a direita denomina “comunista” vai dos comunistas de carteirinha, passando pelos defensores dos direitos civis, até arruaceiros sem eira nem beira. 
O que hoje emerge no Brasil é uma extrema direita, anti-intelectualista e vingativa, com fortes traços autoritários. Creio não haver dúvidas de que a desmoralização da classe política, com a ajuda de uma esquerda que aparelhou o Estado e agiu em completa dissonância com sua pregação, é a grande responsável pelo resultado das últimas eleições presidenciais.
Nas palavras de um anônimo que circula em áudio nas redes sociais, a neurociência explica o “cabeça feita”, vítima da imunização cognitiva que, contra todas as evidências contrárias, persiste em suas crenças. Por que, mesmo com seu líder preso, os eleitores petistas continuam apoiando ladrões condenados em duas instâncias? “A imunização cognitiva é um escudo que permite que as pessoas se agarrem a valores e credos, mesmo que fatos objetivos demonstrem que eles não correspondem à verdade. A pessoa cognitivamente imunizada está no terreno da fé que dispensa o raciocínio lógico”.
O processo de imunização cognitiva incluiria algumas fases, sendo a primeira delas o isolamento de pessoas que tenham opiniões contrárias e a segunda, a redução da exposição às ideias contrárias, passando a ler e a ouvir apenas as opiniões na mesma linha dos seus credos. 
O florescimento e a consolidação das grandes democracias, mesmo abrigando segmentos políticos radicalizados, ocorreram em sociedades que contavam com amplas classes médias. Talvez seja possível afirmar que, no Brasil, é a fragilidade de uma classe média meio conservadora, meio liberal e, portanto, de centro que tem favorecido as aventuras populistas de esquerda e de direita. Nenhuma democracia se sustenta na ausência de respeitáveis forças políticas radicalmente de centro.

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