Flavio Saliba

Sociólogo e professor da UFMG, Flávio Saliba escreve quinzenalmente nas sextas-feiras em O TEMPO

Opinião

Sobre os fundamentos sociais da criminalidade

Publicado em: Sex, 29/10/21 - 03h00

Retomo aqui a discussão sobre os temas da cidadania e da criminalidade. O sociólogo Claudio Beato afirma, com propriedade, que existem duas teorias contrastantes sobre as causas da criminalidade. Uma delas nos diz que criminalidade e violência decorrem de fatores de natureza econômica; privação de oportunidades, desigualdade social e marginalização. “A outra teoria credita ao delinquente e aos atos criminosos uma agressão ao consenso moral e normativo da sociedade. O baixo grau de integração moral é que produz o fenômeno do crime”.

A meu ver, tais teorias não são contrastantes, e sim parciais ou carentes de rigor sociológico. Embora apontem para as causas imediatas da criminalidade, tais teorias ignoram suas determinações estruturais: a frágil difusão das relações de mercado e, consequentemente, da divisão do trabalho social em sociedades que ingressam tardiamente na modernidade. 

Ora, tanto desigualdade social e marginalização quanto o baixo grau de integração moral não são outra coisa senão o resultado da incompleta difusão das relações de mercado e da divisão do trabalho, enquanto fontes de integração social ou de solidariedade orgânica, como propõe Émile Durkheim. “Se a divisão do trabalho produz a solidariedade, não é só porque faz de cada indivíduo um agente de troca, como dizem os economistas; é porque cria entre os homens todo um sistema de direitos e deveres que os ligam uns aos outros de maneira durável”. 

Ademais, é consensual entre os clássicos da sociologia que igualdade e liberdade, vale dizer, cidadania civil, estão estreitamente associadas à emergência das sociedades de mercado. Sendo assim, não é de se esperar que em países como o Brasil, onde o desemprego estrutural e as atividades informais são uma constante, reine a coesão social garantidora de uma sólida moralidade coletiva. É apenas dessa forma que se pode afirmar “que o baixo grau de integração moral é que produz o fenômeno do crime.

E aqui se coloca um sério problema: como punir o crime de forma a restabelecer os valores morais de sociedades que, em princípio, carecem desses valores? As chamadas teorias da “urban underground”, ou da pobreza urbana, são unânimes em associar as elevadas taxas de criminalidade à concentração da pobreza em áreas segregadas das grandes cidades onde proliferam o alcoolismo, o uso e o tráfico de drogas, famílias desestruturadas, mães solteiras, jovens fora da escola e desprovidos de orientação familiar. 

Embora estatisticamente comprovada, a correlação entre espaço físico e criminalidade não aponta senão para epifenômenos de uma realidade estrutural adversa à coesão social e à ampliação dos direitos da cidadania. 
Para concluir, Beato nos apresenta um “modelo seletivo de organização de redes criminosas” de grande utilidade para os estudiosos do fenômeno da criminalidade. Nele se distinguem três etapas cruciais do desenvolvimento das práticas criminosas, a saber: a formação de gangues territoriais e grupos expressivos; o crime desorganizado em estruturação; e crime organizando-se em bases políticas. Alguém duvida que a sociedade brasileira tem feito avanços nesta última etapa?

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.