Heron

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Servirá para alguma coisa

Publicado em: Sáb, 17/05/14 - 03h00

Lembro-me da Copa de 1982 – a primeira que acompanhei com alguma consciência –, quando a rua sem asfalto em que morava era decorada com bandeirolas e pinturas dos postes com o verde e o amarelo. Tudo feito pelos próprios moradores, que ainda cortavam bambus para fazer portais, estouravam bombas dentro de latas de massa de tomate e aproveitavam o clima das vitórias do time de Telê Santana para fazer as típicas festas juninas.

Pela idade, não tinha a mínima noção da realidade brasileira, mas também isso não importava nem mesmo para os adultos da minha família. Era o clima frio, os ventos para soltar pipas e o time de Zico, Sócrates, Éder e Valdir Peres que encantavam a mim e a todos os familiares e vizinhos. Era um gostoso sentimento de alienação geral.

Dasayev, o goleiro soviético, que tomou dois gols do Brasil na fase classificatória, era quem me inspirava a ficar até tarde em amontoados de areia tentando defender “canhões” chutados por garotos maiores. Não sei por que o russo me chamava a atenção. Talvez por ser o arqueiro da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, uma “nação” que me enchia de dúvida, pois sempre ouvia falar de comunistas sem saber o que era isso.

O futebol era um alento aos problemas da família. Um tio, que sofria de um tipo de esquizofrenia, curava-se subitamente neste período. Minha família, alheia aos murmúrios políticos de João Figueiredo, não percebia o lado financista do evento.

Nesse contexto, o Brasil acabou sendo eliminado prematuramente pela Itália do carrasco Paolo Rossi, mas fez bonito. A decepção pela derrota foi como uma facada no peito, uma injustiça com uma das melhores seleções de todos os tempos. Choramos de verdade.

A experiência de 1982 criou sensações fantásticas para as próximas Copas. Quatro anos demoravam muito para passar, e a expectativa crescia geometricamente com a aproximação da competição.

Em 1986, já com idade suficiente para entender algumas coisas, o país era outro. José Sarney já tinha feito seu plano cruzado e seus “fiscais” já estavam nas ruas controlando os preços, mas, no futebol, o aquecimento para a Copa ainda empolgava.

Eis que chegamos a 2014, com uma Copa no Brasil. Hoje, diferentemente dos anos 80 e 90, a população já não se empolga como antes, e as crianças, ao contrário das de minha infância, não saem mais para festejar nas ruas.

O aquecimento para a Copa é outro, completamente diferente do que se imaginava quando Lula trouxe o campeonato da Fifa para cá. Servidores insatisfeitos, sem-teto, sem-casa, metalúrgicos preocupados em perder os empregos, professores desiludidos, estudantes revoltados, rodoviários intolerantes e PMs em greve são os personagens das ruas.

A expectativa de ver a seleção entrar em campo é menor do que aquela que pretende pagar para ver se o movimento Não Vai Ter Copa irá progredir.

O mundial virou pano de fundo. Tudo bem. Vai valer a pena. Minhas filhas, que hoje não se importam em saber o nome do goleiro da seleção, mas sabem explicar o que é black bloc, serão testemunhas de que a Copa de 2014, por um motivo ou por outro, serviu para alguma coisa.

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