LAURA MEDIOLI

Crack, uma desgraça anunciada

'O Crack como Ele É' é daqueles livros que não conseguimos parar de ler, numa busca constante por desfechos felizes

Por Laura Medioli
Publicado em 24 de fevereiro de 2019 | 03:00
 
 
Hélvio

Recebi da jornalista e escritora Sandra Kiefer, o livro “O Crack como Ele É”, baseado numa série de reportagens feitas por ela – com coragem e sensibilidade –, relatando histórias e dramas vividos nas cracolândias de Belo Horizonte. Trata-se daqueles livros que não conseguimos parar de ler, numa busca constante por desfechos felizes.

O tema é denso, preterido, sofrido, que machuca e é machucado, costuma ser evitado, mas está aí, na nossa porta, na nossa cara, sem distinção de cor e classe social, se espalhando por todos os lados, desestruturando famílias e dizimando vidas.

A cada página virada, relatos que inevitavelmente me transportavam ao passado. Época em que vi de perto, durante minhas tantas idas a aglomerados da região metropolitana, o desespero das mães que pediam socorro. Confusas com aquela novidade do mal, que no início dos anos 90 se infiltrava na juventude, descobrimos que a maconha e as bebidas eram problemas pequenos perto do que estava por vir.

Jovens arregimentados pelo tráfico, gente de outros Estados e má intencionada, invadindo áreas onde existiam famílias do bem. Muitos se perderam nesse caminho quase sem volta, e poucos, muito poucos, conseguiram vencê-lo.

Carol é uma delas. Eu a conheci quando ela ainda estava por baixo. Nosso primeiro encontro, que era para ser rápido, estendeu-se por toda a tarde. Depois, outros encontros, e aquela sensação de impotência perante uma força que desconhecemos. O poço das drogas é bem mais fundo do que imaginamos. Além das vítimas, desmorona a família, o trabalho, a dignidade... Mas ela conseguiu ser mais forte; na última vez em que estivemos juntas, foi para rir. Elogiei sua nova aparência, sua pele, seu cabelo e seu salto escandalosamente alto, mas, principalmente, o seu ótimo astral.

E foi num depoimento, corajoso e sincero, escrito com a alma, que ela desabafou:

“O meu único inimigo foi o crack, droga que, sem sombras de dúvidas, é mais perigosa do que todas as outras juntas. Estive com ela, fomos bem ao fundo do poço, eu vi a luz bem no fundo, mas ela não brilhava, era fosca, tinha uma palidez, um tom acinzentado, um gosto de dor, sei lá. De poder avassalador, o crack sempre vicia quando do seu primeiro experimento, e o que vem depois é tragédia certa. Crack e desgraça são indissociáveis e quase palavras sinônimas. O crack é a verdadeira degradação humana; me transformou numa espécie de zumbi naquele tempo. Nada de banho, nada de amigos; somente a vontade de fumar, e nada mais. Eu via naquela poderosa droga, mais barata e acessível, a pretensa solução para resolver ou para esquecer meus problemas. Na verdade, eu sempre pensei que a droga nunca me dominaria e que eu fosse forte, até ria quando as pessoas falavam que eu estava viciada. Na verdade, eu não acreditava. O fracasso da política antidrogas do governo é estampado nos quatro cantos do Brasil. A cada reportagem, nós assistimos, atônitos, a pessoas adultas, jovens, adolescentes e crianças consumindo o crack, deitados, nas calçadas, debaixo dos viadutos, das marquises, sem se incomodarem com nada ou mesmo correndo em desespero, vivendo naquele mundo imaginário, sem perspectiva de vida alguma. Me vejo em cada um deles. Meninos e meninas na flor da idade se prostituem até por R$ 1 e praticam qualquer ato ou todo tipo de crime possível em busca da pedra. Famílias inteiras se desesperam vendo os seus entes queridos buscando o fundo do poço pelo crack, e eu sem poder fazer nada... O crack traz a morte em vida, arruína a vida dos seus familiares e vai deixando rastros de lágrimas, sangue e crimes de toda espécie na sua trajetória maligna. A fumaça altamente tóxica é rapidamente absorvida pela mucosa pulmonar, excitando o sistema nervoso, causando euforia e aumento de energia ao usuário. Disso, advém a diminuição do sono e do apetite, com consequente perda de peso – cheguei a pesar 39 kg, quando pedi ajuda. Até hoje, sinto o cheiro do crack e um medo que me traz as lembranças daquela aceleração ou diminuição do ritmo cardíaco. Ainda quase não durmo e faço uso de medicação para esse fim. Não é fácil, uma luta a cada dia. O crack me destruiu em vida, ao ponto de eu perder o contato com o mundo externo, me tornando uma morta-viva, movida pela compulsão à droga, que é intensa e intermitente. A dificuldade que o dependente do crack tem ao querer deixar o seu consumo é imensa e requer uma força de vontade fora do comum, diferentemente do que acontece com os usuários das outras drogas. O crime organizado continua investindo pesado no tráfico. Muita cumplicidade perversa promove e mantém o crack no seio da nossa sociedade. A polícia, apesar de todos os esforços, com prisões e apreensões de traficantes e de grandes quantidades de crack, não é forte o bastante para vencer essa batalha. Aliada a tais medidas governamentais, é necessária também a conscientização popular, principalmente na área da educação. Não podemos achar que a polícia e a medicina resolverão os problemas, que, muitas vezes, se iniciam nos lares, nas escolas, nas festas, enfim, afetando principalmente os jovens, mais expostos, por vários motivos, à atração do mundo das drogas. Eu pedi ajuda, porém meus pais não conseguiam acreditar nas pessoas; eles me viam drogada, mas nunca me ofereceram ajuda, apenas choravam. Eu gritei por socorro e, mesmo assim, quase não fui ouvida. Muitos não têm força mais nem para gritar. Perguntem se precisam de algo, se querem ajuda, conversem com aquela pessoa que você acha que está envolvida nesse mundo podre. Uma palavra, às vezes, faz a diferença. Eu, Carolina Fernandes Leite, hoje, sou livre do crack, mas presa a ele em cada pessoa que vejo sofrer.”

Difícil, não é? Para quem quer se aprofundar no assunto, indico o livro de Sandra Kiefer, “O Crack como Ele É”, disponível nas livrarias Leitura, Opus e Livraria da Rua (rua Antônio de Albuquerque, 913), entre outras. Também é possível encontrá-lo na Amazon e na Saraiva virtual. Super-recomendo!