Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

Nas arquibancadas

Publicado em: Sáb, 04/12/21 - 03h00
Ainda zonza com o foguetório que se estendeu madrugada adentro na última quinta-feira, me senti em meio a uma muvuca gostosa, que me atrapalhava o sono, mas me alegrava os pensamentos. Cinquenta anos sem ganhar um Nacional merecia isso, muita alegria e muuuuitas comemorações. E a torcida em polvorosa continuou com a farra no decorrer da semana. 
 
A pesquisa DATATEMPO veio a confirmar o que sempre achei: o atleticano é mais fanático que o cruzeirense. Em levantamento passado, foi dito que a torcida do Cruzeiro é maior que a do Atlético, e acredito, pois no interior a simpatia pela Raposa sempre foi maior. Mas entre ter simpatia e ter paixão existe um oceano.
 
Faça uma pesquisa dentro de sua própria família, como já fiz na minha. Meu pai era americano, um dos irmãos nem sabe direito o que é futebol, os outros dois eram simpatizantes do Cruzeiro, ou seja, se diziam cruzeirenses, mas nunca souberam sequer o nome do técnico.
 
E eu, a caçula e única menina da casa, adivinha? Não só sabia o nome do técnico, mas sabia a escalação inteira do Atlético, incluindo os reservas, preparador físico e, se bobear, até os nomes dos gandulas em dia de jogo. Naquela época, numa partida contra os “Ibis da vida”, se tivesse 50 torcedores no estádio, com certeza, um deles era eu. Assim como foi num longínquo Atlético e Fluminense no Maracanã, numa quarta de final, em plena quarta-feira, em que fui parar no Rio de Janeiro com o amigo do amigo do amigo, com algumas mentirinhas, ou melhor, algumas omissões da verdade e muito choro em cima da minha mãe, que, devido à pressão da filha enlouquecida, acabou deixando.
 
E foi nas arquibancadas do Maracanã que eu e a rádio Itatiaia descobrimos que eu era a única mulher em meio à torcida alvinegra. “E no meio da massa atleticana, uma única mulher. Qual o seu nome, minha filha?”, perguntou o locutor em transmissão ao vivo. E eu, do alto do meu 1 metro e 56 gritei: “Laurinha!!!” Para a alegria da torcida, que ao meu lado aplaudia. Aliás, tudo que eu falava era aplaudido entusiasticamente.
 
Rapidinho, virei a mascote da turma, embora muitos componentes das organizadas já me conhecessem de outros carnavais, ou melhor, de outros campeonatos. Em Belo Horizonte, na época sem muitas transmissões televisivas, meus amigos me escutaram na rádio e, rindo muito, comentaram: “Só podia! Só podia ser ela! Não podia ser outra...” 
 
Em meio às minhas loucuras futebolísticas, acabei conhecendo muitos torcedores fanáticos, divertidos e, claro, malucos. Dentre eles, um que não dá para esquecer. 
 
Chamava-se Joel. Troncudinho e meio careca, vestia-se religiosamente de Atlético, dos pés à cabeça. Boné, camisa, short preto, meião branco e chuteira. Uniforme completo. 
 
 
Conheci-o há muitos anos, quando mocinha, na subida para o Mineirão. Levava nas mãos um radinho e, no coração, aquela paixão que só mesmo outro apaixonado poderia compreender. Em poucos jogos, nos tornamos amigos. 
 
  
Sentávamos próximo à charanga, na parte central do estádio. 
 
 
Um dia, apareceu machucado: braço quebrado, rosto inchado e “esfolões” por todo o corpo. 
 
  
– Que isso, Joel? Foi atropelado? – perguntei. 
 
 
– Nada! Foram os safados daqueles argentinos. Me lasquei, mas também bati! – dizia isso abrindo um sorriso largo. 
 
  
Pagou em não sei quantas prestações uma viagem cara e exaustiva de ônibus para ver o seu time “apanhar”, o time e ele, literalmente falando. “Desaforo!”, pensei. Levar surra de argentino dentro e fora do estádio. Mas deixa pra lá. Futebol é assim mesmo. Num dia, ganhamos; no outro, perdemos. O problema é a violência. Isso, sim, tira o prazer do esporte. 
 
Atlético e Cruzeiro. Mineirão lotado. Próximo à charanga, consegui localizar meu amigo, que, aos trancos e barrancos, guardava o meu lugar. À nossa frente, de pé, cinco “armários”. Sem camisas, tatuados de dragões, postaram-se nas arquibancadas. De todos que ali passavam, era exigido “pedágio”, normalmente um pouco de cerveja, causando indignação. Recusar? Só quem fosse louco. 
 
Início do jogo. Sentam-se todos, ou melhor, quase todos. Os “armários” permanecem de pé, ou melhor, fazem questão de ficar de pé. Claro, a reação é imediata. Torcedores que estavam atrás são obrigados a se levantar, eles e nós, que, por azar, estávamos exatamente na “fronteira”. A gritaria é geral. Aproveitando o coro, meu amigo resolve também protestar. 
 
  
– Senta aí, pô! Tá pensando que é invisível? 
 
 
Nessa hora, um deles se virou e, segurando-o pelo colarinho, disse em alto e bom som, para a torcida inteira ouvir: 
 
 
– Quero ver o filho da p... que vai me fazer sentar! 
 
 
E eu, nervosa, entrei no meio: 
 
 
– A gente só está querendo assistir ao jogo. Custa sentar? – Bastou o seu olhar para eu entender rapidinho que custava. 
 
  
 
Não é preciso dizer que eu, Joel e mais cinco dúzias de torcedores assistimos ao jogo de pé, caladinhos e conformados. Fazer o quê? 
 
  
 
E, como se não bastasse, ainda tínhamos que ver impotentes o centroavante do Cruzeiro fazer miséria em cima de nossa defesa. O capeta, como diria o meu amigo. 
 
Numa jogada excepcional, para o nosso desespero, fez o terceiro gol em cima do Atlético. Nesse momento, ainda incrédula com o resultado, vi meu amigo atirar o seu radinho no chão. Tentei intervir. 
 
  
 
– Tá maluco? Pra quê quebrar o rádio? – perguntei. 
 
  
 
E ele, na maior seriedade do mundo: 
 
 
 
 
– Roberto César faz gol em qualquer lugar... menos no meu radinho! 
 
  E, com indizível prazer, continuou a destruição, fazendo-o se calar para sempre, antes mesmo que a voz do locutor narrasse aquele último gol. 
  
 
Dedico esta crônica aos apaixonados feito ele, que, no auge da comemoração, jogam seus radinhos pro ar. 
 
 
E, para finalizar, desejo de coração que a torcida do Cruzeiro volte a ser feliz e tenha esperança de dias melhores. Tenho certeza de que terá.  O vôlei me transformou. Por incrível que pareça, o Sada Cruzeiro me faz cantar a plenos pulmões o hino e as músicas do time celeste. Entendi que cruzeirenses, flamenguistas e outros não são nossos inimigos, apenas torcem para outro time. E que reinem a paz e o respeito em nossos estádios.