Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

Nunca é demais

Publicado em: Dom, 18/12/16 - 03h30

Assistindo na televisão ao noticiário sobre as recentes enchentes e desmoronamentos em Belo Horizonte e região metropolitana, minha mãe se recordou de um fato ocorrido conosco em meados de 1995.

– Filha, você se lembra de quando fomos ajudar umas pessoas cujas casas foram soterradas? Onde era mesmo?

E me lembro, então, de como tudo começou. Do telefonema aflito que recebi numa tarde de chuvas e trovoadas.

– Laurinha, vem pra cá. É urgente! O barranco está cedendo, e algumas casas indo junto...

A ligação estava péssima; minha amiga, presidente de uma associação comunitária, desesperava-se ao narrar o ocorrido, e eu, das margens da lagoa, onde trabalhava na retirada dos aguapés, corri para pegar a bolsa enquanto dirigia-me ao carro. Deveria encontrar-me com ela num dos maiores aglomerados de Ribeirão das Neves. No caminho, liguei para minha mãe. Uma mão a mais, nessas circunstâncias, é sempre bem-vinda.

– Mãe, coloca um tênis e uma calça jeans! É urgente! Estou passando aí pra te pegar.

– Como, filha? Com essa chuva toda? Aonde nós vamos?

E foi assim que a envolvi no episódio que hoje, durante o almoço, lembramos. 

O aglomerado era enorme, com becos e vielas a se perderem de vista. Fomos entrando, perguntando sobre minha amiga, velha conhecida da comunidade. Descobri que ela havia saído em busca de socorro. Perguntei sobre os deslizamentos, e as pessoas, nervosas, nos indicavam o caminho.
Enquanto puxava minha mãe pela mão, adentrávamos o local pelas pequenas ruelas. 

Chegamos a um descampado no alto de um morro, onde pessoas andavam aflitas de um canto ao outro. No caminho, uma cerca de arame. Depois de saltar, pedi a minha mãe que também saltasse.

– Não, filha! Isso eu não consigo...

Nesse momento, um homem forte, com uma cicatriz no rosto, apareceu para nos ajudar. Atravessou com minha mãe e depois nos acompanhou até o local dos deslizamentos. Uma casa estava soterrada, e as pessoas se perguntavam se havia moradores dentro. Mulheres choravam, e crianças, assustadas, agarravam-se a elas. Imediatamente, iniciou-se um mutirão, com a retirada de objetos e móveis das casas atingidas e em situação de risco. Apreensivos, temíamos novos desmoronamentos. O homem esteve ao nosso lado o tempo todo, coordenando o trabalho com segurança e autoridade. Ele não sabia quem eu era, mas eu, desde o início, sabia de quem se tratava. Morador e líder comunitário, há alguns anos pleiteava ser vereador. Assim feito minha amiga, também liderança na região. Por serem adversários políticos de longa data, penso que minha presença na comunidade, ao lado dela, começou a incomodar. Afinal, durante anos, ajudamos os moradores com bazares, alimentos, cobertores, remédios, roupas e doações que recebia e pedia por aí.

– Laurinha, você tem um colchão para me arrumar? Tem uma senhora que está dormindo com os filhos no chão...

Histórias feito essa se repetiam com frequência. Com a caderneta de telefones na mão, corríamos atrás. E, assim, tentávamos amenizar um pouco a carência e a miserabilidade de alguns dos muitos moradores do local.

Talvez por sentir-se ameaçado em seu “curral”, mesmo sem nunca ter me visto, o homem se encarregou de espalhar inverdades a meu respeito, chegando ao ponto de dizer que eu e meu marido havíamos mandado interditar a pedreira – maior fonte de renda da região –, onde muitos da comunidade trabalhavam. Minha amiga me ligou aflita.

– Laurinha, venha aqui para desmentir essa história. Explicar ao povo que vocês não têm nada a ver com o fechamento da pedreira.

E lá fui eu, de casa em casa, desfazendo os boatos espalhados com tanta veemência. Imagina! Meu marido sequer sabia da existência da tal pedreira. Para bem dizer a verdade, ele nem sabia onde ficava o aglomerado que, vez ou outra, eu frequentava. E os culpados pelo desemprego geral, segundo o outro, seríamos nós.  

Mas o mundo dá voltas, e foi numa dessas que o conheci pessoalmente. Sabia seu nome e da cicatriz que carregava. Passamos a tarde juntos até quase anoitecer. Felizmente, nenhuma vítima fatal. Na hora de eu e minha mãe irmos embora, cansadas e sujas de barro, ele nos acompanhou pelos becos. Até que, finalmente, deve ter se perguntado: “Quem são essas duas que apareceram do nada, num dia tão complicado?”.

– Estivemos juntos a tarde inteira, e nem nos apresentamos. Eu sou o fulano... –disse, estendendo-me as mãos. E eu, com o melhor sorriso, lhe disse: – E eu sou a Laura.

O susto foi visível.

– Medioli???

No dia seguinte, minha amiga me ligou achando graça.

– Laurinha! Acho que o fulano está arrependido. Veio aqui só para me falar de você... só que, desta vez, bem.

Começamos a rir. Desde esse dia, nunca mais fui chamada de “burguesinha intrometida”, aquela que “mandou fechar a pedreira”.

Há muito não tenho notícias dele, espero que continue firme em seu trabalho comunitário. Ele e minha amiga batalhadora. A comunidade é carente; quanto mais gente disposta a ajudar, melhor. Sem rivalidades, sem brigas por espaço político, afinal, a demanda é grande, e toda ajuda, por menor que seja, é sempre  bem-vinda.