Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

O último telefonema

Publicado em: Dom, 22/04/18 - 04h00

Com 53 anos, Raul era um bom marido, um ótimo pai, tinha um excelente emprego. Diria que eram uma família bem-estruturada até o dia em que ele mudou. Na verdade foi mudando aos poucos, no temperamento, nas atitudes. Passou a ter uma preocupação excessiva com a aparência, com os cabelos brancos que começavam a despontar e com as vestes formais que o trabalho exigia. Num fim de semana saiu e voltou carregado de sacolas. Comprou tênis, bermudas, camisas polo... Estranharam aquele repentino consumismo, afinal, ele nunca se interessou por roupas, grifes, essas coisas.

Depois, vieram as corridas no calçadão. Logo ele, que se lixava com os quilos a mais, com a barriga proeminente e com a dificuldade que tinha para subir três andares. Nunca deu ouvido aos conselhos dela para fazer alguma atividade física, nem que fosse uma simples caminhada na praia.

Rindo, ele dizia que sua “ginástica” era o trabalho, subir e descer as escadas do escritório, visitar obras, receber clientes.

Gostavam de ir ao cinema, teatro, bons restaurantes. E quando seu time jogava, ele costumava ir ao Maracanã com os filhos. Vascaíno roxo, acabou transmitindo sua paixão aos garotos.

Após um tempo, outra mudança, dessa vez radical. E ela percebeu que ele perdia o interesse por esses pequenos prazeres. Os filmes se tornaram maçantes, as peças já não o entusiasmavam mais e, impaciente, tentava convencer os meninos, Tiago e Mateus, de que o Vasco, numa fase ruim, não os merecia na torcida.

Também a corrida no calçadão, que iniciara cheio de entusiasmo, começou a rarear. Cada hora inventava uma desculpa para deixar de fazê-la. Ela não estranhou, sabia que aquilo era fogo de palha. O único estranhamento era o silêncio e a ausência que, de repente, tornaram-se constantes.

Passou a chegar tarde do trabalho. Um dia o seu chefe ligou perguntando se ele estava bem. Ficou sabendo do acidente e desejava uma pronta recuperação. Ela não sabia o que dizer, afinal, que raios de acidente era aquele? Desconcertada, confirmou tudo.  “Sim, ele está melhor. Sim, foi um grande susto... Claro, pode deixar que eu transmito a ele o seu abraço...”

Quando ele chegou, partiu pra cima: “Raul, dá para explicar o que está acontecendo?” E ele, nervoso, acabou se abrindo.  Disse que a história do acidente foi a maneira que encontrou para justificar suas ausências na empresa. Estava cansado de tudo, do trabalho, da vida, do mundo!  E aos gritos, pedia que respeitassem esse seu momento.

Assim ela o viu saindo da casa e de si mesmo. A barba por fazer, o raciocínio confuso, a ansiedade absurda. “Perdi o emprego”, contou numa certa manhã.  E daí?  Já não aguentava mais tantas cobranças. “Estou de saco cheio, entendeu, Ana Teresa? De SACO CHEIO!” E saiu batendo a porta.

Depois disso, as ausências passaram a ser frequentes. Vez ou outra ele telefonava. “Ana, não se preocupe, estou bem, manda um beijo pros garotos...” E desligava:  o celular e a família.

Ana passou a viver à custa de ansiolíticos. Os meninos iam mal nos estudos, era difícil para eles, adolescentes, absorver essa mudança. Nem o Vasco com suas vitórias conseguia trazer o pai de volta.

Até que, numa tarde, receberam um telefonema. Era da polícia. Raul era procurado como a principal testemunha ocular de um crime violento. A vítima? Sua namorada.

– Namorada? – perguntou Ana, abalada com a súbita notícia. Até o momento, nada sabia sobre a garota. Descobriu que tinha 24 anos, era viciada em crack, mais uma vítima do sistema.

– Por favor, quero saber de tudo – pediu. E eles lhe contaram, em detalhes. Raul mantinha o caso já havia alguns meses. Por causa dela acabou se envolvendo com o mundo das drogas: cocaína, ecstasy, crack, o que pintasse. Segundo escutas telefônicas, ele a chamava de “meu amor bandido”, pois sabia da sua estreita ligação com o tráfico. Acreditava que ela – com a sua juventude – lhe trouxesse vida; mal sabendo o que o destino lhe reservava.

Nunca souberam ao certo de onde essa moça surgiu; quando descobriram o caso, ela já havia morrido, assassinada de forma violenta pela maior facção criminosa do Rio de Janeiro. Raul estava junto dela, mas conseguiu escapar do cerco.

Dias depois, começaram as chantagens. Eles sabiam o endereço da casa, da sua razoável condição financeira e, o mais grave, onde os garotos estudavam. Ligavam ameaçando, perguntando onde que o “filho da puta do seu marido viciado” havia se escondido. E queriam dinheiro, muito dinheiro. Sua sogra, Juracy, uma senhora de 77 anos, viúva, também sentia-se acuada, vivendo uma história de terror constante, por mais que tentassem ocultar dela o seu drama. Para pagar as dívidas do filho, acabou se desfazendo de alguns imóveis, sua maior fonte de renda.

Os dias passaram tensos, nenhuma notícia. Os meninos deixaram de frequentar a escola, dona Juracy envolta em rezas e sofrimento, e Ana Teresa, sem forças, não sabia o que fazer. Até que, numa noite de chuva, recebeu um telefonema. Chorando, Raul pedia desculpas pelos seus erros, estava muito desorientado. E antes que ela dissesse alguma coisa, ele desligou.

Horas depois, soube pela polícia que ele dera fim à sua vida. Por mais que tentasse absorver esse tsunami de acontecimentos, manter o equilíbrio, dar força aos seus filhos, Ana nunca se sentiu tão sozinha e incapaz.  Raul, ao se matar, matou a família inteira.

História baseada em fatos verídicos, com nomes e localidade alterados.