LAURA MEDIOLI

Os doidos da Vila Paulo

Redação O Tempo

Por Laura Medioli
Publicado em 09 de abril de 2017 | 04:30
 
 
Fernando Fiúza

Vila Paulo era o nome da minha antiga casa na Pampulha, onde passei minha infância e juventude. Uma espécie de fazendinha, com 70 mil metros quadrados de muito verde, muitos bichos e muita gente.

Não existiam portas ou fronteiras para os amigos, os amigos dos amigos e até mesmo os desconhecidos. E nesse último grupo, atraídos pela casa sempre aberta, estavam os doidos.

Eram doidos de todo jeito: pacatos, totalmente malucos ou aparentemente normais com parafusos a menos.

Quando éramos crianças, entrou um desses no gramado. Tirou a roupa e, pelado, ficou tomando banho de esguicho. Precisou que Seu Pedro, o jardineiro, o convencesse a se vestir e, literalmente, ir “tomar banho” em outro lugar.

Teve outro, bem mais comportado, que ia lá para rezar na capela. Dizia achar tudo muito bonito e tranquilo. Completamente inofensivo, acabamos nos acostumando a sua presença.

Lembro-me também de um homem que, apesar de não ser doido, gostava de levar seus filhos nos fins de semana para fazer piquenique em nossa casa. Ficava passeando no jardim até se alojar com as crianças à sombra dos pés de jaca, próximo à piscina. Da varanda víamos sua presença inofensiva. Também não nos incomodava.

Um dia apareceu um jovem pai de família, desempregado, pedindo ajuda. Oferecemos trabalho. Virou jardineiro, pedreiro, meio “pau para toda obra”. Aparentemente tranquilo e muito bom de serviço, pediu a meu pai que lhe emprestasse o barracão próximo à pedreira para dormir. Como já tinha um bocado de gente morando na Vila Paulo, um a mais não seria problema.

Só que, em pouco tempo, o homem virou um problemão! Levando esposa e filhos para o barraco, em uma noite endoideceu e espancou a família. Só ficamos sabendo disso quando apareceu em nossa casa uma viatura da radiopatrulha.

– Como assim??? – quis saber a minha mãe. Segundo os policiais, eles foram lá devido à denúncia da espancada, que, àquela altura, com as crianças, tinha sumido no mundo. Pior foi descobrir seu apelido e seu passado. Viera do Norte de Minas e gabava-se de ser o valentão da região. Discutindo com nosso jardineiro, ameaçou:

– Tu sabes como sou conhecido na minha terra? – e, em alto e bom som, para todo mundo ouvir: – MEU NOME É MATA 7!

Por pouco não virou “Mata 8” quando minha mãe soube dessa história e passou duas noites sem dormir pensando em como nos livraríamos da criatura.

Hoje fico pensando: mais doidos do que eles foram meus pais, numa época em que ainda se acreditava nos seres humanos, como se todos fossem bons, corretos e merecessem confiança.

O doido da casa do meu irmão Virgílio, sem dúvida, foi a presença mais inusitada na Vila Paulo. Virgílio morava na residência ao lado da nossa e, nesse dia, havia dormido fora. De manhã cedo, ao chegar, encontrou-a bagunçadíssima. Estranhando aquilo, foi entrando de mansinho até dar de frente com um sujeito com cara de índio, vestido com uma camisa sua e com seu calção de banho. Frente a frente, e sem compreender bem o que se passava, perguntou ao homem o que ele fazia ali. Para surpresa do meu irmão, ouviu-o dizer que a casa era dele. Bastou isso para Virgílio, assustado, fechar a porta e sair correndo.

Voltou acompanhado por mim e pelo Paulo, nosso irmão mais velho. Nesse momento, já tínhamos acionado a polícia. Olhamos pela janela e, perplexos, vimos a sala transformar-se num templo sabe-se lá de quê. Um altar enorme, feito com cerâmica do Vale do Jequitinhonha, guardava em seu centro uma vela e uma imagem de Nossa Senhora. Ao perceber que estava sendo observado, correu e fechou a janela na nossa cara, para o nosso espanto.

Assim que a polícia chegou, entramos todos juntos até nos defrontarmos com o homem nu, fazendo suas necessidades no pilão de 200 anos – presente de minha tia Lúcia. O guarda, percebendo a falta de parafusos do sujeito, perguntou:

– Mas como foi que você entrou?

E ele:

– Foi a mãe natureza. Foi ela que me trouxe aqui.

E, sem questionar, levaram-no de volta a sua casa. Um dos guardas o reconhecera. Era doido mesmo, porém inofensivo. Mamãe, apiedando-se do moço, quis dar-lhe de presente a imagem de Nossa Senhora, sendo prontamente impedida por meu irmão.

– Tá doida, mãe? O homem vem aqui, apronta essa confusão, e você ainda dá presente? Desse jeito ele acaba voltando.

Ainda bem que mamãe não lhe deu a imagem. O homem nunca mais voltou.