Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

Preconceito e esperança

Publicado em: Qui, 28/08/14 - 03h30

Acompanhando os distúrbios raciais nos EUA, lembrei-me daqueles ocorridos na França – embora por motivo diverso – há cerca de dez anos. Estava na Itália seguindo de perto a convulsão racial naquele país. Aproveitei a ocasião para entender um pouco mais sobre a imigração que ocorria a pleno vapor na Europa. Conversei com senegaleses, eslovenos, albaneses e outros provenientes de países africanos e do Leste Europeu.

Os maiores problemas enfrentados por esse contingente de imigrantes e seus descendentes eram, além da discriminação, o desemprego e a falta de perspectivas, fatores preponderantes para atiçar o pavio num continente onde quase tudo já fora criado e a falta de empregos ainda era uma constante.
Conversando com um amigo de Florença, antropólogo, pude compreender um pouco da situação em que se encontravam os imigrantes na Europa, em especial os da Itália. Estava claro o preconceito, principalmente com relação aos povos oriundos do Leste Europeu. O alcoolismo era uma realidade, assim como o envolvimento com drogas. Tudo isso, seguido ao desemprego, acabava situando-os às margens da delinquência.

Conversei com um esloveno. Sentado na calçada, com um chapéu na mão, como tantos outros, pedia esmolas. Uma pessoa bonita, de olhos muito azuis. Depositei um euro em seu chapéu e tentei puxar assunto. O homem, um senhor de mais ou menos 50 anos, apesar dos quatro passados na Itália, não conseguia se expressar – seu italiano era sofrível. Como o assunto ali não iria render, despedi-me.
Tailandeses eram bem vistos no país. Pacatos e cordiais, trabalhavam em casas de família, principalmente cuidando de idosos. Conheci uma de nome “Judy”, cujo nascimento se deu num campo de arrozal. Sua história merecia uma crônica inteira.

Dos africanos, os senegaleses eram os mais respeitados: não costumavam se envolver com roubos, bebidas ou drogas. Viviam como camelôs vendendo óculos “Ray-Ban”, bolsas “Prada” e “Louis Vuitton”. Nas ruas de Parma, tive a oportunidade de conversar com alguns. Disse-lhes que gostaria de escrever sobre a vida que levavam, como e por que aportaram ali. Desconfiados, se pronunciaram somente após terem a certeza de que eu era mesmo brasileira, portanto sem interesse em prejudicá-los com denúncias sobre migração ilegal. Falei do Ronaldinho e de outros famosos. Adoraram! Sabiam tudo sobre eles. Disse-lhes que no Brasil também tínhamos nossos migrantes que, em busca de melhores oportunidades, acabaram indo para os EUA. Falei do clima quente e das características comuns aos nossos países. E assim, com jeitinho, fui ganhando a confiança e a simpatia.

Contaram-me que normalmente os imigrantes, antes de irem para a Itália, aportavam na França, vindos de Dacar. As viagens eram penosas e, até há pouco tempo, muitos nem sequer conseguiam chegar, morriam no caminho. Depois as condições melhoraram. Existem ONGs e associações exclusivas para o atendimento dessas pessoas, oferecendo-lhes ajuda, orientações e estadia. Chegavam a dividir espaço com dez, 15 conterrâneos, e a adaptação não era nada fácil. Problemas de alojamento eram um dos principais obstáculos para a integração. Também a língua, diferenças culturais e até mesmo climáticas faziam do Ocidente uma experiência marcante e sofrida. Mesmo assim, não se arrependiam. Por pior que eles estivessem, a Europa ainda era sinônimo de esperança e melhores condições de vida.

Conversei com Abdul, 27, e Gadjii, 25, dois negros simpáticos e falantes. Um formou-se em matemática no Senegal. Desempregado e passando por dificuldades, resolveu partir, fugir do marasmo econômico e social que vinha se arrastando havia anos em seu país. Teve sorte; após um período trabalhando como ambulante, acabou sendo admitido numa fábrica de farinha. Ganhando razoavelmente, não precisava dividir a casa com dez ou 15 companheiros. Dividia a moradia com uma brasileira. Perguntei se era sua namorada, disse que eram apenas amigos. Ela, prostituta em Nápoles, foi parar no norte da Itália fugindo de um cafetão que, além de bater nela, ameaçou matá-la.
Gadjii era ambulante, vendia livros e bolsas. Comprei dois livros, e ele me sorriu satisfeito. Acho que estranharam minha presença falante e curiosa. Penso que europeus não dispunham de tempo ou interesse pela vida que levavam.

Para Gadjii, que deixou uma pretendente em seu país, as mulheres são “rainhas”, e ele gostaria muito de conhecer uma boa “ragazza” para que pudesse “colocá-la num pedestal”.
Despedi-me sensibilizada com a situação dos dois jovens. Desejei a Gadjii que ele encontrasse a sua “rainha”.

– Arrivederci, Laura! – gritavam, enquanto eu, ao longe, os avistava com seus sorrisos largos e mãos que acenavam.

Muitos anos se passaram. Hoje, percebo que as coisas estão mudando. O número de migrantes ainda é expressivo, assim como a xenofobia, mas vejo com otimismo que, aos poucos, eles vão se inserindo no mercado de trabalho, e não mais ficam às margens da sociedade, rejeitados pela população local, vendendo seus produtos falsificados. Trabalham nos supermercados, nos grandes magazines, nas fábricas, no comércio. Constituem famílias, gerações nascidas e criadas em solo italiano que, apesar da crise econômica, hoje vê nos imigrantes não mais o inimigo número 1, mas um provável aliado disposto a arregaçar as mangas para, juntos, reerguerem a economia do país que os acolheu.

Preconceitos são perversos, e o mundo seria melhor se eles não existissem.