LAURA MEDIOLI

Santinha

'Magrelinha, sem raça definida, costelinhas à vista, feridinhas na orelha, andar vagaroso, com aquela persistência de quem tenta sobreviver'

Por Laura Medioli
Publicado em 06 de novembro de 2021 | 03:00
 
 
Acir Galvão

Encontrei-a sob um sol escaldante, deitada no asfalto quente de uma rua de Betim. Enquanto me aproximava, ela se encolhia com medo. Insisti na aproximação, falando baixinho até conquistar sua confiança. Me agachei para acariciá-la, e ela, surpresa, deixou-se tocar. Seus olhos me olhavam com ternura, enquanto, carente, repousou a cabeça em minha perna. 
 
Pouco antes já a havia visto lambendo um pedaço de picolé que alguém deixou cair no chão. Depois, com o rabo entre as pernas, dirigiu-se a uma poça de água suja, para matar a sede. Até que, cansada, se esticou no asfalto. 
 
Magrelinha, sem raça definida, costelinhas à vista, feridinhas na orelha, andar vagaroso, com aquela persistência de quem tenta sobreviver. Não era filhote nem adulta o suficiente, talvez uma mocinha que, embora jovem, já apanhou muito da vida, o rabo encolhido tinha sua razão de ser. 
 
Santinha foi o nome que lhe dei, o primeiro que me veio à cabeça. Ao se deitar na minha perna, me conquistou, e foi aí que decidi levá-la. Acreditava que, pela primeira vez, ela teria um lar de verdade. 
 
Desidratada, não conseguia comer nem um grão da ração que eu havia comprado, provavelmente nunca vira ração na vida. Comprei um patezinho de carne, que ela lambeu com vontade. 
 
No mesmo dia, o carro da clínica veterinária veio buscá-la. Pedi que fizessem todos os exames possíveis, todas as vacinas necessárias, pois era visível a fragilidade de sua saúde. 
 
Ficou na clínica durante duas semanas, num tratamento intensivo, sob a responsabilidade de duas anjas veterinárias, que, com pesar, me passaram seu diagnóstico. Lá ela não era Santinha, chamavam-na de Princesa. E a Princesa, infelizmente, estava muito doente. 
 
Os exames chegaram para comprovar o que eu temia: cinomose e babesiose, ambas gravíssimas e que poderiam levá-la a óbito. 
 
Voltei no tempo, à casa de minha infância, onde dividíamos o espaço com vários bichos, entre eles alguns gatos e muitos cachorros. Cockers, dobermanns, dálmatas, vira-latas, cachorros emprestados, quando os donos viajavam e não tinham com quem deixar. Uma confusão de bichos, todos soltos e felizes. 
 
Numa panela gigante era cozido fubá com bofe, uma coisa horrorosa, mas que eles adoravam. Ração naquela época nem sei se existia. E eram todos saudáveis, com exceção de alguns filhotes, maiores vítimas da doença, que em pouco tempo os levava. Por meio do veterinário, descobrimos que a desgraça que pairava sobre eles se chamava “cinomose”. Nem sei precisar quantos cães perdemos, por isso desde criança nunca me esqueci desse nome. 
 
Já casada, continuei a ter meus cachorros, todos vacinados, vermifugados e castrados. Não comem angu com bofe, se alimentam de ração e, quando sobram, alguns pedacinhos de frutas ou casca de mamão, que adoram. 
 
Gostava de ir com minhas filhas ao canil municipal de Belo Horizonte para resgatar alguns dos cãezinhos sofridos que lá viviam. Sob o olhar delas, de pura compaixão, costumávamos adotar os mais tristes e debilitados. Antes de levá-los para casa, deixava-os no veterinário para os cuidados necessários. Ficavam lá uma semana e depois morriam. 
 
O veterinário, cansado de ver a cena se repetir, me proibiu de escolher os mais enfermos: “Laurinha! Pegue um cachorrinho saudável, esses que vocês trazem vêm com muitas doenças, que podem passar para os outros cachorros da casa. Isso, se não morrerem antes”. 
 
Ao ver a situação da “princesa” Santinha, lembrei-me dos conselhos do dr. Geraldo. Mas decidi levar adiante, encarar dentro do que fosse possível as duas doenças graves que a acometiam. Muitas vacinas, hidratação, injeções, medicamentos, internações... Até que, enfim, a liberaram, obviamente com um longo tratamento a ser administrado pela frente. 
 
Santinha capengava de uma perna, sintoma da cinomose. Por mais que se alimentasse, não parecia engordar. Os ossinhos à mostra eram prova disso. Arrumei para ela um jardim com gramado e uma varanda com colchãozinho onde pudesse dormir. Quando me via chegar, com esforço nas perninhas fracas, se aproximava sorrindo. Sim, os cachorros sorriem. 
 
E como era bom ver um pouco de alegria onde antes só havia tristeza. 
 
Os dias foram passando, e numa noite ela começou a chorar. Nós a cobrimos com uma toalha, embora não fizesse frio. Na noite seguinte, a mesma coisa, tomou dipirona para amenizar as dores, até que em certo momento suas patinhas traseiras paralisaram de vez, e o choro se fez constante. Era nítido o seu sofrimento, se alimentava pouco, já não se arrastava mais atrás de mim no gramado, sequer conseguia sair do lugar. 
 
Impotente diante da doença, eu já não sabia mais o que fazer. Liguei para uma das doutoras, que, com paciência e muito conhecimento, me explicou em pormenores os efeitos nocivos da cinomose. Nunca vi uma doença tão cruel, que leva à paralisação das pernas, à incapacidade de comer e tomar água, à cegueira e tantas outras coisas que nos fazem chorar só de imaginar. Insistir com os medicamentos? Eles surtirão o efeito desejado? Prolongar o sofrimento??? Que decisão difícil, meu Deus! 
 
E pelas mãos caridosas da doutora anja, Santinha se foi dormindo. Deixou de sorrir para sempre enquanto eu, abalada, não conseguia parar de chorar. 
 
Fiz questão de contar essa história para alertar a todos que amam seus animais. A cinomose é uma doença terrível, altamente contagiosa para outros cães. Não contamina os homens, mas nos destrói por dentro. 
 
Para combatê-la, existe uma vacina preventiva, dada quando são filhotes e uma vez por ano quando adultos. Não deixem de vaciná-los. O surto da doença está aí. Não permita que essa desgraça tire para sempre o sorriso de quem mais te ama. 
 
 
Para quem quiser adotar um animal, seja gato ou cachorrinho, haverá no dia 7 de novembro, das 9h às 13h, domingo, uma feira de adoção, com mais de 40 animais à espera de um lar. Local: Parque de Exposições, na rua do Rosário, 1.840, Betim.