LAURA MEDIOLI

Yogui

Ao sair do carro, aquela coisinha emaranhada e suja olhou para minha filha com seu único olho que funcionava, era cego do outro. E foi amor à primeira vista.

Por Laura Medioli
Publicado em 13 de março de 2021 | 03:00
 
 
Acir Galvão

Apareceu num final de rua, próximo a um aglomerado, cheio de carrapichos, magrinho e com o pelo embolado. Ao vê-lo, minha cunhada me ligou: 

– Laurinha! Achei um cachorrinho lindo! O porteiro do prédio disse que há dias ele está perdido. Vou levá-lo para a casa da sua mãe. 

Era final de semana, em tempos de pré-pandemia, quando filhos, netos e bisnetos se reuniam aos domingos na casa de meus pais. 

Ao sair do carro, aquela coisinha emaranhada e suja olhou para minha filha com seu único olho que funcionava, era cego do outro. E foi amor à primeira vista. Recém-casada, minha filha nem pensou duas vezes: a família iria crescer a partir daquele dia. Batizou o bichinho, sem raça definida, de Yogui. Em sua casa, deu-lhe o primeiro banho de chuveiro, com direito a xampu e condicionador de gente, afinal, desembolar aquela bola marrom e carrapichada não seria fácil. 

Mais de um ano se passou. Sempre que viajava, minha filha o deixava na minha casa, junto às outras três cachorras, que, para bem da verdade, não se entusiasmavam nada com a ideia. Já eu e meu marido adorávamos. Adolescente, Yogui não parava um minuto, enchia a sacola da Mali, puxando suas orelhas e rabo, enlouquecia a Estopa e, pasmem, por um bocado a mais de ração, mordeu e tirou sangue da Vlora, nossa enorme pit-lata, três vezes maior que ele. 

Duas vezes por semana, ia para a “escolinha” próximo a sua casa, uma espécie de creche canina, para quem mora em apartamento e precisa gastar energia. Em pouco tempo, Yogui já tinha recebido três advertências. Comandando e agitando o espaço, virara o chefe da “quadrilha”. 

Num desses feriados, viajamos para uma fazenda, longe da muvuca e da Covid. Três dias para ler, caminhar, dormir, nadar e descansar, afinal, 2020 não tinha sido um ano fácil. 

Vlora, nossa pit-lata, e o Yogui foram juntos. Vlora, sempre quietinha ao meu lado, enquanto o Yogui, estabanado, dava voltas no jardim da casa, subia e descia escadas, destruía chinelos, pulava no sofá e em tudo que via pela frente. Nunca desfrutara tanto espaço em sua vida. 

De repente, um cheiro medonho no ar...  

– Yogui rolou na carniça, gritou alguém. Deus do céu! Que bicho foi esse que ele encontrou? – Não pensamos duas vezes: o banho se fazia urgente. Voltou com os pelos recém-secados, enquanto procurávamos do lado de fora o causador daquilo. 

À noite, enquanto jogávamos buraco, escutamos um barulho. Yogui caiu na piscina, ou melhor, se atirou na água atrás de um sapo que, desde o final da tarde, estava à espreita. Encharcado, minha filha o levou para se secar. Voltamos ao jogo. 

De repente... TIBUM! DE NOVO??? Desta vez, saindo com um sapo na boca. E foi aquele deus nos acuda! 

Eles o secaram novamente, e com um pito homérico meu genro gritou: 

– Yoguiiiii!!! Não pule mais na água, entendeu??? – A piscina tinha uma parte rasa, de onde ele podia entrar e sair, justamente onde encontrou o sapo. 

Finalmente, o silêncio voltou a reinar, e pudemos dar continuidade à partida, que não findava nunca. 

Até que Yogui adentrou a sala, mordendo alguma coisa dura em cima do tapete. Uma pedra?, pensei. O bicho tem mania de pôr na boca tudo o que vê pela frente. Minha filha, ao se aproximar, dá um grito: 

– Yoguiiii! Larga isso!!! – “Isso” era um caramujo gigante, que, espatifado no tapete, quase me fez vomitar. 

– Credo! O que é isso??? – perguntei ao ver aquilo. 

– Um escargot mineiro – respondeu meu genro, rindo, enquanto tirava a “coisa” do tapete. 

E era só o primeiro dia, pensei.  

Eu e meu marido gostamos de chamá-lo de Foguetinho, tal a sua energia e disposição. O cachorro não sossega um minuto, é a própria alegria ambulante, impossível vê-lo sem sorrir. 

No dia seguinte, ele foi conhecer o pasto. Correu dois quilômetros na ida e dois na volta, para o desespero da minha filha. Com sede, resolveu tomar água do açude, de onde voltou com barro no focinho e as patas sujas de cocô de cavalo.    

De volta à casa, cadê o Yogui? 

O encontramos cavando um buraco gigante no jardim, atrás de algum bicho que não conseguimos descobrir.  

A noite chegou. No colo da minha filha, Yogui foi apagar seu fogo para, finalmente, adormecer sob as estrelas, ao som de grilos, sapos e corujas. Um anjinho travesso em forma de cachorro.