Leonardo Boff

Para ele, a Madona de Rafael era a sua terapia pessoal

A beleza é que salvará o mundo do desespero, disse Dostoiévski

Publicado em: Sex, 02/05/14 - 03h00

Dos gregos aprendemos, e isso atravessou todos os séculos, que todo ser, por diferente que seja, possui três características transcendentais (estão sempre presentes, pouco importa a situação, o lugar e o tempo): ele é “unum, verum et bonum”, o que quer dizer que ele goza de uma unidade interna que o mantém na existência; ele é verdadeiro, porque se mostra assim como de fato é; e é bom porque desempenha bem o seu lugar junto aos demais, ajudando-os a existirem e coexistirem.

Foram os mestres franciscanos medievais, como Alexandre de Hales, e especialmente são Boaventura, que, prolongando uma tradição vinda de Dionísio Aeropagita e santo Agostinho, acrescentaram ao ser mais uma característica transcendental: o “pulchrum”, vale dizer, o belo.

Baseados, seguramente, na experiência pessoal de são Francisco, que era um poeta e um esteta de excepcional qualidade e que, “no belo das criaturas, via o Belíssimo”, enriqueceram nossa compreensão do ser com a dimensão da beleza. Todos os seres, mesmo aqueles que nos parecem hediondos, se os olharmos com afeição, nos detalhes e no todo, apresentam, cada um a seu modo, uma beleza singular, senão na forma, mas na maneira como neles tudo vem articulado com um equilíbrio e harmonia surpreendentes.

Um dos grandes apreciadores da beleza foi Fiódor Dostoiévski. Para ele, a contemplação da Madona de Rafael era a sua terapia pessoal, pois sem ela desesperaria dos homens e de si mesmo, diante de tantos problemas que via. Em seus escritos, descreveu pessoas más e destrutivas, e outras que mergulhavam nos abismos do desespero. Mas seu olhar, que rimava amor com dor compartida, conseguia ver beleza na alma dos mais perversos personagens. Para ele, o contrário do belo não era o feio, mas o utilitarismo, o espírito de usar os outros e, assim, roubar-lhes a dignidade.

“Seguramente, não podemos viver sem pão, mas também é impossível existir sem beleza”, repetia. Beleza é mais que estética; possui uma dimensão ética e religiosa. Ele via em Jesus um semeador de beleza. “Ele foi um exemplo de beleza e a implantou na alma das pessoas para que, por meio da beleza, todos se fizessem irmãos entre si”. Ele não se refere ao amor ao próximo; ao contrário: é a beleza que suscita o amor e nos faz ver no outro um próximo a amar.

A nossa cultura, dominada pelo marketing, vê a beleza como uma construção do corpo, e não da totalidade da pessoa. Então, surgem métodos e mais métodos de plásticas e botoxes para tornarem as pessoas mais “belas”. Por ser uma beleza construída, ela é sem alma. E, se repararmos bem, nessas belezas fabricadas, emergem pessoas com uma beleza fria e com uma aura de artificialidade, incapaz de irradiar. Daí irrompe a vaidade, não o amor, pois beleza tem a ver com amor e comunicação.

O papa Francisco conferiu especial importância na transmissão da fé cristã à via “pulchritudinis” (a via da beleza). Não basta que a mensagem seja boa e justa. Ela tem que ser bela, pois só assim chega ao coração das pessoas e suscita o amor que atrai (“Exortação ‘A alegria do Evangelho’”, nº 167). A Igreja não visa o proselitismo, mas a atração que vem da beleza e do amor, cuja característica é o esplendor.

A beleza é um valor em si mesmo. Não é utilitarista. É como a flor que floresce por florescer, pouco importa se a olham ou não, como diz o místico Angelus Silesius. Mas quem não se deixa fascinar por uma flor que sorri gratuitamente ao universo? Assim devemos viver a beleza no meio de um mundo de interesses, trocas e mercadorias. Então, ela realiza sua origem sânscrita Bet-El-Za, que quer dizer: “o lugar onde Deus brilha”. Brilha por tudo e nos faz também brilhar pelo belo.

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