LEONARDO BOFF

O nascedouro da utopia brasileira está na cultura de raiz popular

O que faz o Brasil ser Brasil é a autonomia criativa

Por Da Redação
Publicado em 13 de maio de 2016 | 03:00
 
 
DUKE

Praticamente todos os grandes analistas da nação brasileira tinham os olhos voltados para o passado: como se formou este tipo de sociedade que temos. Foram detalhistas, mas não dirigiam os olhos para a frente.

Todos os países que se firmaram projetaram seu sonho maior e, bem ou mal, o realizaram, às vezes como os países europeus, penalizando pela colonização outros povos na África, na América Latina e na Ásia. Geralmente, é num contexto de crise que se elabora a utopia, como forma de encontrar uma saída. Celso Furtado, que, além de renomado economista, era um agudo observador da cultura, nos diz em “Brasil: A Construção Interrompida” (1992): “Falta-nos a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou estar ameaçada” (p. 35).

Não nos faltaram situações críticas que seriam as chances para elaborar nossa utopia. Mas as forças conservadoras e reacionárias “se empenharam em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação” (p. 35) por medo de perder seus privilégios.

E, assim, ficamos apenas com um Brasil do imaginário, gentil, forte, grande, a província mais ridente do planeta Terra. Mas fomos impedidos de construir um Brasil real que integrasse minimamente a todos, multicultural, tolerante e até místico.

Chegou o momento em que se nos oferece o desafio de construir essa utopia. A partir de que base assumiremos essa empreitada? Deve ser a partir de algo tipicamente nosso, que tenha raízes em nossa história e represente outro software social. Esse patamar básico é nossa cultura, especialmente nossa cultura popular. O que faz o Brasil ser Brasil é a autonomia criativa da cultura de raiz popular.

A cultura aqui é vista como um sistema de valores e de projetos de povo. A cultura se move na lógica dos fins e dos grandes símbolos e relatos que dão sentido à vida. Ela é perpassada pela razão cordial e contrasta com a lógica fria dos meios, inerente à razão instrumental-analítica que visa à acumulação material. Esta predominou e nos fez apenas imitadores secundários dos países tecnicamente mais avançados. A cultura seguiu outra lógica, ligada à vida que vale mais que a acumulação de bens materiais.

Nossa cultura, admirada no mundo inteiro, nos permite refundar o Brasil, o que significa “ter a vida como a coisa mais importante do sistema social. É construir uma organização social que busque e promova a felicidade, a alegria, a solidariedade, a partilha, a defesa comum, a união na necessidade, o vínculo, o compromisso com a vida de todos, uma organização social que inclua todos os seus membros, que elimine e impeça a exclusão de todos os tipos e em todos os níveis” (Luiz Gonzaga de Souza Lima, em “A Refundação do Brasil: Rumo à Sociedade Biocentrada”, 2011, p. 266).

A solução para o Brasil não se encontra na economia como o sistema dominante nos quer fazer crer, mas na vivência de seu modo de ser aberto, afetuoso, alegre, amigo da vida. A razão instrumental nos ajudou a criar uma infraestrutura básica sempre indispensável. Mas o principal foi colocar as bases para uma biocivilização que celebra a vida, que convive com a pluralidade das manifestações, dotada de incrível capacidade de integrar, de sintetizar e de criar espaços onde nos sentimos mais humanos.

Pela cultura, não feita para o mercado, mas para ser vivida e celebrada, poderemos antecipar, pelo menos um pouco, o que poderá ser uma humanidade globalizada que sente a Terra como grande Mãe e Casa Comum. O sonho maior, nossa utopia, é a comensalidade: sentarmo-nos juntos à mesa e desfrutarmos a alegria de conviver amigavelmente e de saborear os bons frutos da grande e generosa Mãe Terra.