Leonardo Boff

A urgência de se criar uma cultura alternativa à do capital

Uma experiência de impacto: o encontro com José Mujica

Publicado em: Sex, 27/03/15 - 03h00

Participando de um congresso ibero-americano sobre medicina familiar e comunitária, em Montevidéu, no Uruguai, tive a oportunidade de ter um encontro com o ex-presidente José Mujica. Tal encontro deu-se em sua chácara, nos arredores da capital uruguaia. Ali estava ele, com sua camisa suada e rasgada pelo trabalho no campo, uma calça esportiva muito usada e sandálias rudes, deixando ver uns pés empoeirados como quem vem da faina da terra.

Vive numa casa humilde, com o velho Fusca que não anda mais que 70 km/h. Já lhe ofereceram US$ 1 milhão por ele; rejeitou a oferta por respeito ao velho carro, que diariamente o levava ao palácio presidencial, e por consideração ao amigo que lho havia dado de presente. Rejeita que o considerem pobre.

Pertenceu à resistência à ditadura militar. Viveu na prisão por 13 anos, mas nunca fala disso nem mostra o mínimo ressentimento. Comenta que a vida lhe fez passar por muitas situações difíceis, mas todas eram boas para lhe dar sábias lições e fazê-lo crescer.

Conversamos por mais de uma hora. Começamos com a situação do Brasil e da América Latina. Mostrou-se muito solidário com Dilma, especialmente em sua determinação de cobrar investigação rigorosa e punição adequada no penoso caso da Petrobras. Não deixou de assinalar que há uma política orquestrada a partir dos Estados Unidos de desestabilizar governos que tentam realizar um projeto autônomo de país.

Mas a grande conversa foi sobre a situação do sistema vida e do sistema Terra. Aí me dei conta do vasto horizonte de sua visão de mundo. Enfatizou que a questão axial hoje reside na preocupação não com o Uruguai ou com o nosso continente latino-americano, mas com o destino de nosso planeta e o futuro de nossa civilização. Dizia, entre meditativo e preocupado, que talvez tenhamos que assistir a grandes catástrofes até que os chefes de Estado se deem conta da gravidade de nossa situação. Caso contrário, iremos ao encontro de uma tragédia ecológico-social inimaginável.

O triste, comentou Mujica, é perceber que entre os chefes de Estado não se verifica nenhuma preocupação em criar uma gestão plural e global do planeta. Cada país prefere defender seus direitos particulares, sem dar-se conta das ameaças gerais que pesam sobre a totalidade de nosso destino.

Mas o ponto alto da conversação foi sobre a urgência de criarmos uma cultura alternativa à dominante cultura do capital. De pouco vale, sublinhava, trocarmos de modo de produção, de distribuição e de consumo se ainda mantemos os hábitos e valores vividos e proclamados pela cultura do capital, que aprisionou toda a humanidade com a ideia de que precisamos crescer de forma ilimitada e de buscar um bem-estar material sem fim, o que opõe ricos e pobres.

A cultura do capital, acentuava Mujica, não pode nos dar felicidade porque nos ocupa totalmente, na ânsia de acumular e de crescer, não nos deixando tempo de vida para simplesmente viver, celebrar a convivência com outros e nos sentirmos inseridos na natureza.

Importa viver o que pensamos. Impõem-se a simplicidade voluntária, a sobriedade compartida e a comunhão com as pessoas e com a realidade. É difícil, constatava Mujica, construir as bases para essa cultura humanitária e amiga da vida, mas temos que começar por nós mesmos.

Saí do encontro como quem viveu um choque existencial benfazejo: me confirmou aquilo que com tantos outros pensamos e procuramos viver. E agradeci a Deus por nos ter dado uma pessoa com tanto carisma, tanta simplicidade, tanta inteireza e tanta irradiação de vida e de amor.

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