Lucas Simoes

Lucas Simões escreve aos sábados no Magazine

Ana

Publicado em: Sáb, 22/08/15 - 03h00

Ana foi embora há dois meses porque quis. Não topou conversar, não gritou ou chorou. Foi – levando o secador de cabelos, escova de dentes, incensos, todas as roupas e duas malas grandes. Fora uma ou outra peculiaridade esquecida pelas gavetas e pelos cantos da casa, ela deixou para trás apenas a sensação de que o fim é triste. Mesmo o alívio do fim, em amores gastos como o nosso, ainda é triste. “Não tente não chorar. É bom colocar para fora tudo o que faz mal”, foi a réplica dela antes de ir.

Repouso as pernas na cadeira de balanço, acendo um cigarro e vejo a palha queimar vagarosamente com um cuidado entediante, enquanto Charlie persegue uma barata, afoito, pelo tapete da sala, lutando para aleijá-la com suas patas desengonçadas.

Charlie é um bom cachorro, principalmente porque não faz perguntas, não me obriga a conversar nem a contar o que está havendo; e mantém as orelhas em riste e o sorriso aberto com a língua para fora em quase todas as situações, exceto em tempestades e foguetórios. Talvez por isso o elegi como melhor companhia desde que deixei de dividir a casa com Ana.

Porque não é preciso dizer nada dentro deste apartamento de 40 m² igual a tantas outras latas de sardinha por aí nos corações das metrópoles, onde resolvemos plantar hortaliças e pendurar uma rede colorida em frente à TV – uma forma simplista e até meio hippie de amenizar a tentativa cega e malfeita da cidade de evoluir, esmagando seus moradores uns em cima dos outros. Um peso tradicional demais para Ana suportar.

Abro as cortinas e vejo Ana no defeito do semáforo que pisca continuamente uma solitária luz amarela no meio da rua: instaurando um caos silencioso contigo, como se gritasse por ajuda no modo “mute”, enquanto a ansiedade dos carros tira lascas de impaciência uns dos outros, em busca de espaço e direito de ir e vir. Ana é a fuga dessa expressão visceral da cidade grande sufocada em seus próprios bugs automatizados, tentando achar saídas e atalhos por aí sem muito sucesso.

Sabe aquelas pessoas que querem o agora, o tempo inteiro, rejeitando os testes ludibriosos de laboratório e exigindo viver a práxis de ver e degustar por si mesmas, custe o que custar? Então. “É da minha natureza o abandono. É da minha raiz ser fronteira num mundo onde não podemos ter quintais”, ela escreveu na orelha de um livro que ficou para trás, junto com os discos do Bee Gees trazidos à força pelo pai para “dar som à casa nova”. Nunca suportei Bee Gees, e ficar com aqueles LPs me soa como uma sacanagem planejada, uma piada engraçada até mesmo para a solidão.

Um pouco por isso, sorrio de verdade pela primeira vez desde dois meses atrás. Pelos Bee Gees e por entender que eu não preciso saber se Ana partiu rumo ao Pará ou a Jerusalém: é que não importa o que importa quando tomo consciência de que só encontro Ana por inteira aqui, dentro de mim, e não no direito às revelações da vida que ela quer saber.

Não se engane. Não estou feliz nem triste. Eu simplesmente não estou neste momento. Entrei naquele patético e lento período de ver as coisas com outros olhos, adquirir manias de limpeza para me ocupar e me acostumar novamente com a incerteza que nos espera em todo recomeço.
Repita e assuma: Ana é ficção, pronto. Essa é apenas uma entre milhares de justificativas para esgotar as possibilidades que te permitem amar a mesma pessoa por todos os lados, ao descobrir, pouco a pouco, que não é mais possível entrar por nenhum deles. Só depois dá para entender que quem manda é o coração, sempre, mas quem dá os passos e escolhe a direção das nossas necessidades são as nossas próprias pernas.

Este texto foi escrito em 2012 para Ana, uma personagem fictícia de recomeços, criada fora da realidade ou dentro da fantasia que não comporta a acomodação.

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