Lucas Simoes

Lucas Simões escreve aos sábados no Magazine

Epitáfio II

Publicado em: Sáb, 01/08/15 - 03h00

Não vou falar sobre a última visão que tenho de você: em propulsão de desespero, correndo entre lápides construídas sobre chão de terra batida, como se realmente não houvesse o amanhã do Renato Russo. Ok. Não quero te irritar invocando a Legião Urbana. É claro que eu tentei te ligar – mas é claro que números de telefones não sobreviveriam a tantos anos de desuso. Ainda bem que você teve a bonita e dolorosa ideia de escrever uma carta às pressas – entregue pelo Cesário, o mesmo carteiro camarada da minha rua, sim.

Fiquei pensando sobre isso de se sentir no chão pelo nosso breve encontro. Irônico, no mínimo. Já que, aos poucos e com o tempo, a regra é que os cacos pareçam um pouco mais organizados ou disfarçados sob nossos tapetes diários – não sei a diferença. Tenho a impressão que essa é a mensagem dos mantras que as pessoas pregam em cemitérios, não?

“Tudo vai ficar em ordem, o tempo se encarrega de colocar a gente nos eixos”. Um lema que deve se manter vivo diante a morte, quase um absurdo. “É só abandonar a ideia de que ainda fazemos parte de um mesmo plano ou coisa assim. Talvez apenas mais uns dias ou uma estação, quem sabe, e estaremos prontos”. Blá, blá, blá.

Realmente não tem funcionado assim. Não importa o quanto você ainda sinta ou pensa que sente. Não importa o quanto o tempo se encarregue de passar lentamente em conta-gotas imperceptíveis, não importa quantas atrações distintas, perfumes novos e variáveis de sentidos lisérgicos brotem por aí.

Sei que tudo isso parece um pouco dramático e melindroso pra quem se diz tão livre e sem lugar, propenso a viradas de 360º a qualquer momento, aceitando com o mínimo de maturidade um fim – entre tantos outros que terminam vida afora sem notícias ou decretos.

Mas, sei lá. Também ouço esse barulhinho de estrago das suas inquietações. Não sei ao certo por quanto tempo, mas você ainda vai continuar se confundindo em rostos estranhos pelas faixas de pedestres que atravesso, preenchendo os rabiscos mal escritos no fundo das minhas caixas de maçã e dormindo em sono leve numa manta de saudade dentro do meu ego. Sim, saudade: porque amor é uma estação distante agora. Nós dois sabemos. É saudade porque passou. Só não foi totalmente embora.

Fecho os olhos e vejo que todos os ângulos do meu escuro são seus. E em cada falta de claridade eu posso ouvir os sussurros imprecisos que saem da sua boca e não falam uma língua específica. Apenas sussurram, deslizam, desabafam doses de calafrio a cada palavra imaginária que meu inconsciente capta das suas lembranças à noite. É exatamente a sensação que eu mais gosto e detesto ao mesmo tempo. E que persiste até hoje: seis anos depois.

Tive consciência de que eu realmente nunca fui bom com medidas e recipientes para guardar sentimentos: ou eu passo da conta ou eu quebro. Exageros recorrentes, sem trégua ou respiro. E hoje estou certo de que as duas coisas foram feitas em sequência e na mesma proporção de estrago.

Não posso destrinchar uma revelação instantânea para nós dois, mas acho que algumas histórias de amor acabam sem poder, se perdem sem motivo e se dissolvem sem permissão dos envolvidos. O tempo passa e não cura tudo não. Mas leva muita coisa pra longe. E longe, meu bem, é quase um esquecimento. Esse meio termo é que rouba a paz da gente.

Como se convivêssemos com a surpresa de não ter mais para onde voltar – sabendo que a saudade bate na mesma hora que o cansaço. Talvez por isso essas faíscas ainda pulem dos nossos corpos, como imãs inconsequentes se atraindo.

Bom, sobre o que você ousa chamar de amor. Nunca se esqueça que as pessoas mudam, assim como as estações do ano e as tendências da moda. Não estou falando de sentimentos, apenas de pessoas, que muitas vezes são movidas sem sentir absolutamente nada, acredite. Porque amor, meu bem, não é todo mundo que aguenta, não.

Pra mim, amor deveria vir lacrado em uma caixa bem protegida com um aviso: frágil. Vedado a brincadeiras imaturas. Impróprio para quem não está disposto a perder e ganhar em proporções indiscriminadas. Desaconselhável para pessoas que não gostam de sofrer e sorrir, muitas vezes numa sequência improvável. Não recomendável para corações tentando ser felizes com um peso ruidoso no peito. Ou seja, confuso.

Admito, não sei disfarçar meu ranço nem minhas marcas. Acho que o meu problema foi acreditar que por sabermos dançar a mesma música há tanto tempo, nunca erraríamos o passo ou perderíamos a postura. Hoje, eu vejo que a química, a vontade, o entendimento e a mesma necessidade um do outro não são requisitos confiáveis para ganhar a fórmula da tal felicidade. Me explica quando souber? Ou me leva de vez quando entender: como uma fênix, que brinca de viver a morte sem dramas, pelo direito de se redescobrir das próprias cinzas.

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.