Lucas Simoes

Lucas Simões escreve aos sábados no Magazine

Se tudo começasse agora

Publicado em: Sáb, 24/12/16 - 02h00

Hoje eu acordei mais cedo só para escrever um texto corrido e enlatado por frases feitas, movido por arremates morais anexos a uma linguagem pasteurizada, cheio de insinuações que só querem justificar que “tudo vai ficar bem” e não importa mais, o que importa é quando existe café, amor e alguém do outro lado correspondendo a nossas expectativas maquiadas por ilusões rotineiras. Confere toda a descrição do lugar-comum?

Olha, eu ando tão cansado desses enredos ludibriosos em que me meti, embalados em padrões aprovados por filosofias de algum “Mad Men” que define o que é felicidade em duas entrelinhas ou em uma frase de impacto estampada em um cavalete exposto numa sala de reuniões climatizada. Como se realmente não fosse necessário e, além, impossível estar injuriado neste mundão.

Eu ando tão cansado de acreditar nos personagens que invento na ambição de dar vida e lugar ao sol aos sentimentos que as pessoas insistem em chutar todos os dias como latas de Pepsi que não conseguem ser Coca-Cola. Então, a gente precisa ser essa Coca-Cola toda? Todo dia, sem trégua, com muito gás? Por quê?

Eu ando tão cansado de vestir uma capa intelectual e procurar referências grandiosas na música pop ou nos cânones da literatura para explicar minhas supostas dores internas. Eu ando tão cansado de inundar parágrafos com lapidações preguiçosas do que julgo sentir, como se um texto tivesse a obrigação de ser uma grande revelação, um serviço social prestado a sabe-se lá quem. Sério? Onde foi parar a honestidade de abrir a boca para terminar um discurso sem gaguejar, consultas, parênteses, saídas de incêndio e frases rebuscadas?

Eu ando tão cansado de defender um amor vivido só para entrar no jogo, só para fazer parte, só para rimar, só para pedir por “mais amor, por favor” em imagens coloridas e gritos efusivos que se reconhecem em catarse dos centros urbanos, como uma tendência global de fisgar a qualquer custo as quatro letrinhas mágicas que dão sentido à vida. Em qual direção?

Eu ando tão cansado de contar histórias sobre as mesmas opiniões e privilégios e a pele branca exposta a holofotes arbitrários para iluminar um protagonismo enviesado por uma construção histórica de subjugação, sangue e pecados pagos por inocentes escravizados. Queremos pessoas que redefinam o que é ser sexy e ser bonita, como disse a Viola Davis naquele discurso impecável de primeira mulher negra a ganhar um Emmy na história da TV. É pedir demais?

E se pudéssemos mandar ao inferno todas as mentiras e enjoos e manipulações agressivas sobre nossas verdadeiras histórias? E se nos livrássemos de uma vez das máscaras?

E se você soubesse que cada texto meu é uma crítica em falsete para cada erro que cometo em esquinas imaturas? E se você soubesse que cada entrelinha que escrevo não é para levantar um tsunami respeitável por nada, é só para botar para fora todas as coisas que trago no peito. E trago sem notar, sem entender, sem apaziguar.

E se pudéssemos ressignificar a verdade, expor nossos corpos sem modelo pré-concebido e sem vergonha, para enfim sair na rua vestidos daquilo que realmente somos ou almejamos ser?

E se, em vez de criar enredos cinematográficos para situações cotidianas, contássemos sobre o que talvez não seja tão bonito ou palatável, mas que faça jus a nosso inevitável direito à dúvida, desejos de mudanças reais, erros indefensáveis, belezas tão diferentes naturalizadas no mesmo patamar de admiração. E se tudo começasse agora?

Texto originalmente publicado em 16.04.16.

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