Michele Borges da Costa

MICHELE BORGES escreve no Magazine às sextas-feiras. michele@otempo.com.br

Quadrilha hostil

Publicado em: Sex, 16/10/15 - 03h26

João odiava Teresa. Quando viu a moça parada logo atrás da faixa de pedestres, só conseguiu pensar em como aqueles discursos irritantes sobre qualidade de vida e em favor da mobilidade estavam tirando o já minguado espaço para o seu carrão e avacalhando ainda mais o trânsito. Assim que o sinal ficou verde, João avançou, fechou a bicicleta vermelha e, enquanto via a desequilibrada Teresa se esforçando para não se estatelar no asfalto, gritou da janela do carro: “Aqui não é Amsterdã!”.

Teresa odiava Raimundo. Toda vez que a falta de ciclovias a obrigava a disputar espaço com outros veículos, sentia o bafo do motorista do circular aquecer sua nuca. Decidida a nunca mais tolerar uma “fina” nesta vida, não pensou duas vezes antes de quebrar o vidro do ônibus com a própria bicicleta e mandar Raimundo à merda.

Raimundo odiava Maria. Chegava a ficar empolado de raiva quando o carro da frente parava para a senhora atravessar a faixa de pedestre. Pressionado a cumprir o quadro de horários, sempre achou um absurdo que uma só pessoa a pé tenha prioridade em relação ao tanto de gente que carregava diariamente de um lado para o outro, debaixo de chuva, debaixo de sol. De outra vez que Maria cruzasse seu caminho, já tinha planejado usar sua buzina robusta para fazer a velhota correr. “Vai pra casa, dona Maria!”.

Maria odiava Joaquim. Na verdade, colecionava reclamações sobre o senhor, que iam da recusa a levá-la à casa da irmã a quatro quarteirões até o taxímetro desligado quando precisava ir a Confins. Até a música gospel onipresente a irritava, não mais do que o sumiço nas noites de chuva. Quando a filha a ensinou a usar o aplicativo, abandonou Joaquim e passou a andar de carro preto, bebendo água e chupando balinha.

Joaquim odiava Lili. Desde que ela arrebentou com o pé o retrovisor do carro do seu patrão em um dia de congestionamento pesado, a louca se tornou uma de assombração na vida do taxista, aparecendo todo o tempo, em todos os lugares. Joaquim comemorou quando recebeu pelo WhatsApp um vídeo de seis minutos ensinando a derrubar um motoboy. Treinou bastante, enquanto não cruzava com Lili de novo.

Lili odiava João, Teresa, Raimundo, Maria e Joaquim na mesma medida.

João vai trocar de carro porque não está dando conta de pagar o IPVA do seu SUV. Teresa teve a bike roubada na ciclovia da Andradas. Raimundo está de licença médica por conta do estresse. Maria morreu atropelada. Joaquim responde a processo por agredir o funcionário de um deputado depois de confundi-lo com um motorista do Uber. Lili arrumou um novo bico e começa a entregar pizza de madrugada a partir de amanhã. Quer juntar dinheiro pra se casar com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado nessa história.

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