MICHELE BORGES DA COSTA

Tanta intenção

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 27 de novembro de 2015 | 03:00
 
 
acir galvão

Ela, cheia de sacolas nos braços. Eu, correndo para buscar a caçula no jazz. Naqueles 45 segundos de saudades cruzadas pelo acaso, a confirmação do afeto, a atualização ligeira da vida, uma pergunta sobre as irmãs, duas ou três pistas sobre o casamento ainda fresco e uma vontade enorme de ficar mais um pouquinho. Mas sem tempo até para um café, a despedida trouxe um “me liga pra gente marcar alguma coisa”, seguido por um “ligo sim, pode deixar” que as duas tinham consciência de se tratar de um desfecho protocolar, apesar de o desejo ter carimbo de autenticidade.
O abraço apertado fez lembrar o quanto uma gosta da outra, trouxe de volta na memória as noites vividas em dupla, conseguiu resgatar um esboço da gargalhada cúmplice, mas foi incapaz de disfarçar a instabilidade da concretização do encontro.

O turbilhão dos dias, a agenda cheia de compromissos, as escolhas guiadas pela funcionalidade vão colocando os desejos no fim da fila. “Vamos ver se a gente se vê” é a tradução de “eu adoraria passar umas horas com você, mas tenho outras coisas pra fazer”. Com o agravante de que equalizar datas e horários com um querido quase exige uma planilha de Excel.

E, aí, para deixar a vida menos trágica, as pessoas vão contando mentiras para elas mesmas e aceitando todos os convites que surgem, mesmo sem qualquer intenção de se fazer presente. Do outro lado, um quase contentamento com a demonstração de que existe, pelo menos, alguma vontade de estar junto. E vamos nos alimentando de migalhas sociais, como se o tempo fosse infinito.

A coisa se agravou com o Facebook (mais uma pra conta dessa praga viciante). Vira e mexe, alguém anuncia um evento lá, convida meio mundo – você no meio da turma, o que dá aquela sensação quentinha de pertencimento – e o povo marca que vai só como sinal de solidariedade. Ninguém acredita que, simplesmente por ter confirmado, tenha o compromisso de ir. Ninguém acredita que, simplesmente por ter tanta gente confirmada, a audiência estará garantida.
Entre tantos outros esforços cotidianos, seria uma revolução que o sim cheio de boa intenção se tornasse um pacto. Já imagino o susto quando as pessoas que forem convidadas a aparecerem um dia desses lá em casa realmente aparecessem.

Texto originalmente publicado em 24.7.2015