Michele Borges da Costa

MICHELE BORGES escreve no Magazine às sextas-feiras. michele@otempo.com.br

Um muro no jardim

Publicado em: Sex, 15/04/16 - 03h00
A ideia era repetir o ritual de todo domingo. Depois do almoço sem pressa, dar uma volta pela cidade e estacionar o corpinho preguiçoso no gramado espaçoso e democrático que ela fez de jardim desde que escolheu a cidade árida para chamar de sua. Mas naquela tarde cheia de sol, ela viu nascer um muro sólido e incontestável bem no meio do cenário tantas vezes experimentado. Pela primeira vez, ela se viu diante do muro materializado.
 
A barreira extensa e robusta não chegava a ser desconhecida, a matéria-prima é que era nova. Os dois metros de chapas de aço ocuparam o lugar que, nos últimos tempos, tinha sido cultivado com muita obstinação pela intolerância, mas principalmente assumiram a função que desde sempre foi defendida com muita eficiência pela injustiça. 
 
Nos mais recentes encontros de família, o muro foi penetrando, metro a metro, aquele ambiente antes feito de afeto e harmonia, a ponto de ficar dificílimo para ela circular relaxada entre os móveis da sala de estar.
 
O paredão também deu um jeito de acrescentar doses extras de tensão no horário comercial, já naturalmente carregado de eletricidade. Com ele ali a fazer sombra, a mesa de reunião que mantém todos grudadinhos se transformou em um ringue para convicções, discórdias e ressentimentos.

O condomínio ganhou uma nova silhueta, o bairro virou um labirinto, a praça teve seus acessos definidos por cores de camisa. Mas nada comparável com a fratura imposta a sua rede de amigos, virtuais ou não. Entre decepções e surpresas, muitas vezes atacada por crises de surdez voluntária, ela passou um tempo grande dedicada a escolher quem fica do lado de cá, quem deixa do lado de lá.

Tudo por conta do avanço impiedoso do muro, que empurrou mentes e corpos para cercadinhos bem custosos de acessar, onde não existe a menor possibilidade de convivência.

Ela sabe que o monumento que foi erguido em seu jardim tem prazo de validade. A dúvida que não permitiu uma noite de sono decente desde aquele domingo é se as divisões no Brasil – que não são nem novas, nem perfeitamente simétricas, como seria fácil dizer olhando para a cerca – vão aproveitar a homenagem para sair desta cheias de vitalidade. 

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