Michele Borges da Costa

MICHELE BORGES escreve no Magazine às sextas-feiras. michele@otempo.com.br

Vocabulário de estimação

Publicado em: Sex, 31/03/17 - 03h00

Direto do rádio, pula bem no meio do Anel Rodoviário a palavra “desgramento”. A âncora da emissora dedicada ao jornalismo poderia ter escolhido um monte de outras definições para o Aedes aegypti, poderia ter sido polida com um “infeliz”, poderia ter recorrido ao “inconveniente” para parecer irônica, poderia até usar um “desprezível” para mostrar toda sua sanha, mas soltou um “esse mosquito desgramento” para não deixar dúvidas sobre o que passava pela sua cabeça.

Sou capaz de apostar que “desgramento” está na coleção de palavras que levam a âncora da rádio de volta para casa, aquelas que têm um significado íntimo, que foram aprendidas e repetidas incansavelmente na infância, que são insubstituíveis quando a moça procura um adjetivo para o que nela desperta o mais profundo desprezo. Em outras famílias pode aparecer como “desgraçado”, “desgramado”, “desgracento”, mas para ela não existe opção. Esse mosquito é um “desgramento” e não se discute.

É que todo mundo tem seu vocabulário de estimação, um arquivo pessoal de verbos, adjetivos, verbetes que, pelo tempo de uso e nível de familiaridade, são imunes aos modismos. Mesmo quando já apresentam uma aparência gastadinha, são essas palavras que dão conta de traduzir como a gente se sente de verdade.

Entre as minhas favoritas está “esbodegada”, que ganhei como herança da minha mãe. Só ela é possível quando a fase do cansada já passou há uns dois dias, quando exausta não serve mais, quando o corpo e a cabeça querem cama e só. De brinde, tem essa sonoridade que enche todos os vazios da boca.

Se quero falar pra alguém o quanto a presença me consola, só penso em “alegria”. Se a intenção é dar significado para essa pausa que carrego no meio do peito, me vejo agarrada a “suspirosa”. Para chamar com carinho, vem sempre um “xuxu” (com “x” mesmo, já que com “ch” não tem gosto nem cheiro). Para xingar com lirismo, só sai “merda”.

Gosto de “supimpa”, não resisto a um “corpinho”, vejo muita beleza em “melancolia”.

Vou dando a essas palavras status de patrimônio, sabendo que elas estão sempre a postos para me adivinharem. 

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