PAULO DINIZ

As iranianas e os fundamentos do Estado: todo poder deriva do povo

A rebelião das mulheres contra o uso obrigatório dos ‘hijabs’

Por Da Redação
Publicado em 27 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 

O noticiário da região metropolitana das “Quatro Cidades”, nos Estados Unidos, ganhou audiência mundial semanas atrás: pela primeira vez, foi ao ar um programa de notícias cuja apresentadora faz uso do “hijab”, véu que encobre os cabelos das mulheres muçulmanas. A jovem jornalista Tahera Rahman, nascida nos arredores de Chicago, já trabalhava em funções que não demandavam a exposição de sua imagem e confessou quase ter perdido as esperanças de realizar seu sonho de ser âncora de um telejornal. Sua competência técnica, porém, prevaleceu e levou Tahera à posição profissional que sempre quis ocupar.

A história de sucesso da jornalista muçulmana norte-americana faz lembrar os acontecimentos mais recentes do Irã, onde vem ganhando vulto o movimento “quartas-feiras brancas”. Nesse dia da semana, mulheres têm se dirigido a uma rua específica da capital Teerã e retirado seus “hijabs” de uso obrigatório, agitando-os no ar, em silêncio, na ponta de um graveto. Até agora, já foram presas 29 mulheres que fizeram o protesto de forma individual e isolada.

Interessante notar que não foram partidos políticos ou organizações sociais, mas sim indivíduos que se armaram de indignação e disposição para enfrentar as instituições sociais que as oprimiam. O promotor geral do Irã, Mohammad Jafar Montazeri, classificou o protesto como infantil, mas essa crítica é muito mais ameaçadora quando se considera que, apenas em 2014, a polícia iraniana divulgou ter notificado, detido ou levado à Justiça cerca de 3,6 milhões de mulheres pelo uso inadequado do véu. Isso não impediu, entretanto, que, uma por uma, as mulheres agitassem seus “hijabs” com gravetos em 2018.

Quando indivíduos perdem o medo das instituições coletivas que foram planejadas para controlá-los, da polícia ao Judiciário, algo fora do comum está em curso e merece ser observado. Percebe-se o desgaste desses mecanismos de opressão social: por alguma razão, as pessoas deixam de sentir que seguir as regras vale a pena; não apreciam mais a premiação pela obediência ou não mais temem a punição pela rebeldia.

A solução do Estado poderia ser a intensificação da repressão, mas a crise econômica e política que se avoluma no Irã inviabiliza essa opção cruel: o risco seria o de levar ainda mais pessoas à insatisfação. Assim, o cidadão individual encurrala o outrora poderoso Estado, dando exemplo às multidões do quão inúteis se tornaram as garras e dentes do poder público. Sinal dessa situação foi a menção, por parte de lideranças moderadas do Irã, de uma pesquisa de opinião realizada no país, segundo a qual a maior parte das mulheres acredita que o uso do véu deve ser opcional.

Prova-se, assim, uma das máximas mais antigas da política: o poder do Estado emana do povo. Cruel e opressor que seja, o Estado não é capaz de subjugar toda a população sobre a qual tem mandato legal: sempre haverá muito menos vigias do que pessoas a serem vigiadas, e, caso estas decidam se rebelar, por uma questão numérica, a maioria vence.

A concordância das pessoas em relação ao regime que as governa, seja por amor ou por temor, é um elemento indispensável para que as mais básicas estruturas do Estado se sustentem. Portanto, para salvar o conjunto do regime instaurado pela Revolução Islâmica de 1979, é provável que seus líderes recuem dos perigosos aparatos de opressão do Estado e cedam às demandas de algumas mulheres com seus véus espetados em gravetos.