Paulo R. Haddad

Professor emérito da UFMG e escreve às segundas-feiras em O Tempo

A complacência neomalthusiana

Publicado em: Qui, 29/08/19 - 03h00

O período de 2014 a 2020 entrará no registro histórico do Brasil como uma fase de baixo crescimento econômico, de elevadas taxas de desemprego, de escalada das desigualdades sociais e de eventuais pontos de irrupções políticas a partir do segundo semestre deste ano.

O Centro de Políticas Sociais da FGV apresentou recentemente um conjunto de indicadores socioeconômicos que ilustra a escalada das desigualdades sociais no Brasil. São 17 trimestres seguidos nos quais as desigualdades de renda têm aumentado. Desde o início da crise, em 2014, a renda média acumulada dos brasileiros caiu quase 4%. Mas a queda de renda não foi igual para todos, nem ocorreu para alguns. Entre 2015 e 2017, a população de pobres (pessoas que vivem com menos de R$ 233 por mês) aumentou para 23 milhões de brasileiros. A metade mais pobre da população teve perda de 17% de sua renda; a classe média teve perda de mais de 4%; os 10% mais ricos apresentaram ganhos de 2,5%. E 0,1% dos mais ricos obtiveram ganhos acima de 10%.

Em 1798, o reverendo Thomas Malthus formulou uma análise da relação entre os ciclos de crescimento de uma economia e o aumento da pobreza social. Destacou diversos indicadores das desigualdades sociais que se acumularam na Inglaterra na virada do século XVIII para o XIX, afirmando: “Os filhos e as filhas dos camponeses não serão vistos nunca na vida real como rosados querubins, como são descritos nos romances. Não pode deixar de ser assinalado por aqueles que vivem muito no interior que os filhos dos trabalhadores estão muito sujeitos a ser prejudicados em seu crescimento e demoram para atingir o desenvolvimento pleno. Os rapazes que você julgaria estar com 14 ou 15 anos, após verificação, constata ter 18 ou 19 anos... circunstância que só pode ser atribuída à falta de alimento adequado ou suficiente”.

Entretanto, Malthus via com ceticismo as propostas de reformas sociais elaboradas por outros pensadores nas primeiras décadas após a Revolução Industrial na Inglaterra e atribuía ao descompasso entre o crescimento geométrico da população e o crescimento aritmético da produção de alimentos, a principal causa de a classe trabalhadora viver na pobreza e na miséria.

Mais de dois séculos após as previsões de Malthus, observa-se que a produção de alimentos cresceu com elevados níveis de produtividade e as taxas de fecundidade feminina despencaram em inúmeros países e regiões. A questão da pobreza e da miséria passou a ser considerada no campo das relações sociais de produção, especificamente naquelas entre os diferentes modos de acumulação e a distribuição de renda e de riqueza entre os diversos grupos sociais.

O ensaio sobre a população de Malthus é instigante e lança argumentos que ainda constituem matéria-prima para as políticas públicas em vários países, em particular para as políticas de controle demográfico, as políticas sociais compensatórias e as políticas de sustentabilidade dos recursos naturais. Não se pode deixar, contudo, que à sombra do neomalthusianismo se estimule a complacência da opinião pública quanto ao processo obscurantista do desmonte das políticas públicas ambientais e sociais que vem ocorrendo na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, agravando a escalada das desigualdades sociais e da degradação dos ecossistemas.

 

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