Paulo R. Haddad

Professor emérito da UFMG e escreve às segundas-feiras em O Tempo

Autofagia econômica

Publicado em: Qui, 24/10/19 - 03h00

A utofagia, nas ciências biológicas, significa um processo catabólico celular que dá origem à degradação de componentes da própria célula. Esse conceito pode ser transferido para explicar como um sistema econômico, ao entrar em processo de decadência econômica, pode se tornar autofágico. A melhor forma de se observar esse fenômeno de autodestruição é analisar o que ocorre com os ativos acumulados por uma sociedade, a partir de um processo de regressão econômica. E os principais ativos que contam para o desenvolvimento de uma sociedade são as diferentes formas de capitais tangíveis e intangíveis que os seus diferentes grupos sociais acumularam ao longo do tempo.

O capital físico é um conjunto de bens tangíveis (máquinas, equipamentos, infraestrutura física), que produzem outros bens (de consumo, matérias-primas, informática etc.). Não se confunde com o conceito de capital financeiro, um conjunto de valores monetários que produzem renda (juros, dividendos etc.) sem trabalho atual, nem com o conceito de capital contábil que se refere a tudo sobre o que se pratica a amortização. Os capitais intangíveis são o institucional, o humano, o intelectual, o cívico, o cultural etc.

São essas diferentes formas de capitais tangíveis e intangíveis as responsáveis pelo progresso econômico e social de um país ou de uma região, assim como pela formação do excedente econômico efetivo de uma sociedade, o qual cresce com a produtividade total dos fatores. Durante determinado período, o estoque desses capitais se desgasta: o capital físico se deprecia, inovações tecnológicas podem transformar segmentos do capital humano em fatores improdutivos, o aparelhamento político-partidário pode esclerosar instituições públicas etc. Algumas dessas perdas podem ser visíveis e estatisticamente computáveis, outras podem ser invisíveis até emergirem inexoravelmente como passivos na contabilidade das futuras gerações.

Assim, se você entrar numa agência bancária e for atendido no caixa por um funcionário graduado em engenharia ou em psicologia, o serviço prestado será registrado nas contas nacionais como um valor agregado à renda nacional. Mas não serão registrados a perda e o desalento que estarão ocorrendo em termos do capital humano do país, pois, ao investir durante quatro ou cinco anos a mais na formação desse indivíduo, a sociedade brasileira não espera que ele exerça uma função que exige apenas informação e conhecimento da escolaridade de nível médio. 

Se houver um incêndio numa grande fábrica no Sudeste do país, o capital nacional vai registrar uma perda de R$ 4 bilhões, o valor equivalente aos investimentos ocorridos nessa fábrica. Mas, se houver um incêndio em áreas da floresta amazônica, cujo valor econômico dos ativos e serviços ambientais destruídos é equivalente a R$ 4 bilhões, essas perdas poderão ficar invisíveis para a sociedade.

Enfim, como a economia brasileira atravessa um longo período de baixa formação bruta de capital fixo, de colapso dos ativos e serviços ambientais nos principais ecossistemas regionais, de avanço dos empregos informais e do desmonte de muitas ações programáticas de instituições ligadas à economia do conhecimento, não será excessivo prever um processo de autofagia em componentes das principais células de nossos capitais tangíveis e intangíveis.

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