Paulo R. Haddad

Professor emérito da UFMG e escreve às segundas-feiras em O Tempo

Crise na saúde

Publicado em: Qui, 21/11/19 - 03h00

A Constituição de 1988 manteve a definição da antiga Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sobre o salário mínimo. O seu valor deveria ser suficiente para atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com “moradia, alimentação, educação, lazer, vestuário, higiene, transporte e Previdência”. Se considerarmos a família do trabalhador composta por quatro membros, não é difícil mostrar o enorme descompasso entre o valor atual do salário mínimo e o custo dos serviços desta “cesta básica”. Na verdade, os governos vieram cobrindo esse descompasso com a oferta compensatória gratuita dos serviços de educação e saúde e com as políticas de transferências de renda para as famílias mais pobres.

Dessa forma, era previsível que, quando ocorresse uma crise fiscal sistêmica nos três níveis de governo como a que estamos vivendo na última década, a oferta em quantidade e em qualidade desses serviços públicos passasse por um processo de deterioração. É o que vem ocorrendo atualmente de forma mais grave em função do empobrecimento da classe média brasileira e a sua demanda crescente de serviços públicos de saúde e educação.

Quando observado a partir do que se constata nos sistemas de saúde em diversas partes do mundo, o Brasil apresenta uma dualidade básica. De um lado, um sistema privado moderno, com tecnologias de última geração e conhecimento médico mais progressivo para atender a demanda do mercado estadual e nacional dos grupos sociais mais prósperos. Do outro lado, um sistema público bem-concebido e estruturado, mas em processo de lenta e persistente decadência proveniente da crise fiscal nos três níveis de governo e pela crescente demanda da população dos desempregados, dos subempregados e dos empobrecidos.

É possível acompanhar, passo a passo, o silencioso empobrecimento da classe média brasileira: do desemprego à queda no padrão de vida, da perda de renda à necessidade de se despojar de seus ativos financeiros e não financeiros, da falta de oportunidades ao sacrifício da qualidade da educação e da saúde da família.

Nesse processo de empobrecimento da classe média, milhares de famílias tiveram que reduzir as suas despesas orçamentárias abandonando os planos de saúde privados e passando a usuárias dos sistemas públicos de saúde, com sensível perda de qualidade nos diferentes atendimentos e tratamentos. É crescente a pressão da demanda sobre os sistemas públicos de baixa elasticidade de oferta causada pela crise fiscal nos três níveis de governo. Muitas dessas famílias, em situações de emergência ou em busca de qualidade nos serviços de saúde, recorrem até mesmo ao endividamento no cartão de crédito ou no cheque especial com suas taxas de juros escorchantes.

Os problemas de saúde não são apenas relacionados a viver e morrer, mas como pessoas com saúde estão vivendo. Num contexto de nossa história, em que o empobrecimento da população obriga muitas pessoas a se enfileirarem junto aos sistemas públicos de saúde, os quais têm perdido seu padrão de excelência em virtude da crise fiscal, acaba por se criar uma situação de melancolia entre os brasileiros desempregados, endividados e desalentados. E como disse John Steinbeck: “Uma alma triste pode te matar mais rapidamente do que um germe”.

 

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