Paulo R. Haddad

Professor emérito da UFMG e escreve às segundas-feiras em O Tempo

Paulo Haddad

Uma recessão apocalíptica

Publicado em: Ter, 24/03/20 - 03h00

As primeiras projeções do que pode ocorrer com a economia mundial, após o declínio da atual pandemia, sinalizam que há grande possibilidade de uma profunda recessão avassalar as condições de vida das populações de muitos países e regiões. No caso brasileiro, a nossa economia se encontra, neste início de 2020, num ritmo de crescimento insignificante, com a taxa de expansão do PIB per capita próxima de zero, com quase 30 milhões de brasileiros desempregados, subempregados ou desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego), além de 14 milhões de pessoas vivendo na miséria social.

Ou seja, uma economia sem musculatura sistêmica para suportar um novo choque recessivo; uma sociedade dividida entre poucos que têm muito e muitos que têm pouco; a desconstrução das perspectivas de emprego para jovens que têm entre 18 e 24 anos, que ainda sonham com sua realização profissional. O rebatimento espacial de uma recessão global vai encontrar as geografias socioeconômicas de países e regiões muito diferenciadas e diversificadas em relação aos recursos acumulados nos ativos financeiros e não financeiros das famílias e das empresas e quanto à resiliência a novos choques econômicos e mazelas sociais.

No Brasil, o percentual de famílias endividadas é de quase 65%, e o número de empresas, também endividadas, atingiu quase 5 milhões ao fim do ano passado.

Consideremos a famosa taxonomia de perfis financeiros de Hyman Minsky:

1) os fluxos prospectivos dos fluxos de renda cobrirão o principal e os juros;

2) os fluxos prospectivos dos fluxos de renda cobrirão apenas os juros;

3) as receitas no futuro próximo são insuficientes até mesmo para cobrir os pagamentos de juros, de tal modo que a dívida cresce.

São centenas de milhares de empresas e famílias brasileiras que estão, atualmente, no segundo ou no terceiro perfil financeiro. Estão, portanto, fragilizadas e vulneráveis para suportar os impactos socioeconômicos e financeiros de um novo mergulho recessivo da economia brasileira.

Será possível enfrentar e se contrapor a novas rodadas de empobrecimento das famílias brasileiras e de desestruturação financeira das nossas pequenas e médias empresas, que podem acabar tendo que encerrar as suas atividades? As experiências históricas mostram que sim, desde que haja consistência técnica e liderança política nas ações governamentais planejadas.

As economias capitalistas se caracterizam por serem economias de instabilidades recorrentes. Usualmente, a superação de crises nessas economias envolve decisões de políticas econômicas fora da curva das soluções ortodoxas ou convencionais, uma vez que as políticas econômicas devem ser concebidas e implementadas considerando as especificidades do contexto histórico e cultural de cada país. Esse contexto deve considerar as restrições macroeconômicas, a reação comportamental dos agentes econômicos, o nível da capacidade de implementação das ações programáticas de instituições públicas e privadas etc.

Mais do que isso: quanto mais profunda e abrangente for uma recessão, mais intensas e cadenciadas devem ser as ações a serem executadas. Não se desloca um mega transatlântico ancorado num porto com pequenas ações de um barco a remo, ainda que com uma boa equipe de remadores. Ora, o PIB brasileiro é de R$ 7 trilhões, mas, quando somamos todas as transações finais e intermediárias de bens e serviços, o valor da produção nacional chega à casa dos R$ 20 trilhões. Não se desloca esse mega valor bruto da produção por meio de pequenas ações financeiras incrementais. O que fazer?

Uma recessão econômica é um fenômeno complexo, com muitas causas potenciais, mas também com muitos remédios potenciais, os quais dependem de intuição criativa e do desapego doutrinário de quem formula e concebe a política econômica. Einstein dizia que “nenhum problema pode ser resolvido a partir do mesmo nível de consciência que o criou”, mas também nos lembrava que em muitas situações, “a imaginação é mais importante que o conhecimento”.

O Brasil precisa de propostas de natureza pragmática, de rápida implementabilidade, atentas aos seus aspectos redistributivos sociais e regionais e com credibilidade sociopolítica para evitar uma nova recessão, a qual, conforme a experiência do período 2014-2016, tende a aprofundar a concentração da renda e da riqueza. Uma nova recessão econômica, quando ainda não se juntaram os cacos da anterior, pode assumir uma dimensão apocalíptica para os pobres do Brasil.

Apresentamos uma dessas possíveis propostas em cinco movimentos:

Primeiro movimento: elaborar um programa de investimentos cujos projetos já foram licitados, com as licenças ambientais já aprovadas e limpos do ponto de vista do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União; temos, atualmente, mais de cem projetos de infraestrutura econômica e social nessas condições que se encontram paralisados.

Segundo movimento: estruturar um fundo com recursos financeiros resultantes da emissão de títulos do Tesouro Nacional lastreados nas reservas cambiais brasileiras, sendo que os títulos teriam vencimentos dentro do atual mandato presidencial para evitar incertezas com as eleições de 2020.

Terceiro movimento: estimar o valor das reservas, que pode constituir um eventual “excedente” acima de um total que é uma espécie de seguro para lidar com crises e incertezas cambiais; as reservas são, atualmente, de US$ 350 bilhões e esse “excedente” poderia ser de US$ 50 bilhões, mesmo considerando o efeito precaução.

Quarto movimento: realizar cinco leilões mensais para a constituição do fundo, sendo que somente podem participar dos leilões as instituições financeiras nacionais, a fim de que o controle das reservas permaneça com as mesmas (fundos de pensão, bancos oficiais e privados etc.).

Quinto movimento: estruturar um conselho de Ministros e presidentes de bancos oficiais do Governo Federal, sob o comando do Ministro da Economia, que aprovará os projetos, controlará os recursos do fundo, acompanhará e avaliará o seu desempenho etc.

Mais uma proposta utópica? Provavelmente sim. Mas, como dizia Oscar Wilde: o progresso não é senão a realização das utopias.

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