Renata Nunes

RENATA NUNES escreve às sextas-feiras. renatanunes@otempo.com.br

Para um novo anjo

Publicado em: Sex, 23/01/15 - 03h00

Sim, anjos existem. Não me refiro às criaturas celestiais dos relatos bíblicos, querubins ou serafins. Porque, neste caso, cada um tem sua crença. Falo de mensageiros terrenos. Pessoas como eu ou você, munidas de uma capacidade especial: fazer o bem. Mesmo que seja por alguns instantes. Sendo assim, todo mundo pode ser ou ter sido anjo em determinado momento da vida. Normalmente, são gestos simples, pequenas gentilezas, capazes de mudar ou melhorar os dias ruins. Às vezes, são palavras de carinho. Poucas, mas significativas. Valem abraços, sorrisos ou só um olhar. Em horas difíceis, tudo funciona como um afago na alma.

Anjos podem ser amigos, parentes, alguém que você acabou de conhecer ou, até mesmo, quem nunca viu antes. Às vezes, seu anjo será apenas uma voz no telefone ou o autor de um texto que te fez refletir. Enfim, caminhos se cruzam. Muitas vezes, esses mensageiros passam, e nós nem percebemos o quanto foram realmente especiais, ou percebemos e nem mesmo retribuímos. Deveríamos.

Na quarta-feria, encontrei um desses anjos. Ou melhor, ele me achou. Na verdade, não o vi. Não conheço seu rosto. Trocamos uma preciosidade: palavras. Primeiro, por meio da voz grave do outro lado da linha. Depois, pelo texto refinado enviado por e-mail, cuja delicadeza envolvia cada caractere. E, assim, um fio de delicadeza adentrou aquele fim de tarde, enchendo meu coração de afeto. Um afeto puro e despretensioso.

O anjo gosta de histórias. Leu as minhas nas últimas semanas e aconselhou-me: “Dê sempre voz ao seu coração”. Disse que assim encontrarei pérolas, incontáveis. Ressaltou que, se a emoção fala por nós, nossas riquezas guardadas fluem facilmente. Referiu-se à arte de escrever, mas avalio que a força daquelas palavras vale para a vida. Ele também falou de descobertas. De escolhas. Das boas coisas que podemos encontrar ajardinadas dentro de nós. Despediu-se com um beijo na alma. Algo raro e extremamente valoroso.

Não fosse esse anjo, provavelmente, estariam lendo hoje algo sobre a gravidade crise hídrica no país. A ideia era sair em busca de personagens que sofrem com a falta de água. Mas o telefone tocou, e os planos mudaram. Era o anjo, leitor, conselheiro. Com um novo chamado, as palavras se renovaram, fluíram. Naturalmente, vindas de onde ele sugeriu: do coração.

No dia seguinte, acordei bem cedo. Com dois propósitos, ser anjo e encontrar anjos. Fui a campo. Ver gente. Era necessário focar as pequenas ações, as gentilezas, a doçura. Não sabia se ia conseguir continuar assim ao longo do dia, mas tentar já seria essencial. Saí a pé pela rua: “Nos pontos de espera, nas paradas, estão grandes histórias”, alertou-me o anjo.

E numa avenida movimentada encontrei dona Tereza. Isopor pesado nos braços. Mal conseguia carrregar. Estava cheio de garrafas de água mineral. Segundo ela, bem geladinhas.Está desempregada. A água é uma forma de ganhar algum dinheiro enquanto procura emprego. Brasileira, vira-se como pode. Até as 11h vai vender quase tudo. Com o calor de matar, a procura é grande.

A mulher de 54 anos está cansada dos serviços domésticos, quer tentar outro ramo. Discutiu com a patroa e, por isso, foi demitida. Mas precisa seguir. Viu na venda de água a atual solução para ganhar a vida. Pelo menos a comida em casa está garantida. Precisa alimentar as filhas adolescentes. São três. Tereza está com medo da crise econômica. Ouviu falar que a situação em 2015 vai piorar. Tentará nova ocupação com carteira assinada. Enquanto o fixo não vem, se vira nos bicos. Tem esperança.

A propósito, o anjo que inspirou esta crônica se chama Aluísio. Sábio senhor. Foi realmente um enorme prazer conhecê-lo. Obrigada.

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