Renata Nunes

RENATA NUNES escreve às sextas-feiras. renatanunes@otempo.com.br

Questão de escolha

Publicado em: Sex, 09/10/15 - 03h00

Era um “sabe-tudo” no emaranhado da sua prepotência. No contexto dele, continuava a ser o detentor das próprias verdades. Como se elas fossem as únicas. De fato, acumulava, sim, bastante conhecimento. Mestre em política, doutor em marketing, falava várias línguas, conquistava bens materiais e colecionava viagens: os melhores destinos nacionais e internacionais. Muito viu da vida ainda no auge dela, mesmo que numa experiência superficial. Nasceu em “bom berço”, como diria minha avó. A família de posses proporcionou boa educação fora da pequena cidade do interior de Minas onde nasceu. Melhores colégios e universidade. Amizades influentes, mas com as quais pouco pôde ou quis contar, embora se gabasse delas.

Até os 45 não havia se casado por não ter encontrado a mulher ideal. Ela precisava ser rica e bem-sucedida; ter inteligência que ele julgasse acima da média; ser elegante e com corpo escultural, além de, obviamente, carregar uma beleza no padrão hollywoodiano. Não achou, claro. Quando vinha uma coisa, faltava outra (é assim entre os meros mortais). Por muito tempo, aparentou tranquilidade com a solidão das noites frias e com os encontros que não duravam mais que algumas semanas. Dizia estar investindo na carreira, quando já havia chegado ao auge dela. Foi um grande mentiroso, e dos piores: do tipo que mentia para si mesmo.

Julgou e, por isso, viveu temendo o julgamento alheio. Passou boa parte de seu tempo só escutando o que estava na conformidade do próprio pensamento. Nunca foi de pedir ajuda. Precisou dela, mas dispensou. Na maioria das vezes não soube pedir. Sentia-se envergonhado. Em outras, foi acometido pela arrogância. Até que, certa manhã, em sua cobertura, em bairro nobre de São Paulo, abriu os olhos e não conseguiu mover o corpo. Não pôde sequer gritar por socorro. A ajuda só veio depois que a primeira funcionária chegou. Em anos de serviço, tinha trocado poucas palavras com a jovem. E justamente ela ligou para emergência. Mais tarde, finalmente soube que sofrera uma espécie de derrame. Segundo os médicos, teve sorte. A sequela foi uma paralisia parcial da face.

E já se foram mais de dez anos. Hoje, teoricamente mais maduro, ele se considera um “sabe-nada”. Às vezes, mal se reconhece em seu passado. Deixou São Paulo e voltou para o interior de Minas. Não viaja muito. Escolheu passar a maior parte dos seus dias na pequena cidade onde nasceu. Comprou uma casa com quintal perto do imóvel onde vivem seus pais, ambos com mais de 70 anos. Caminha com eles todas as manhãs. Os abraços excessivos da mãe, que o sufocavam na juventude, o ajudam a preencher as falhas da alma. Está aprendendo a receber carinho.

Atualmente, adotou a postura de evitar julgamentos. Procura ter paciência e não mais exige que as pessoas façam as coisas da sua maneira. Interessou-se por uma mulher da idade dele. Ela é separada e tem dois filhos já adolescentes. Não desistiu de construir uma família, mesmo que não seja das mais convencionais. Precisou de um susto (ou de um sinal, como ele gosta de dizer) para recomeçar sua história, virar do avesso. Sempre que me lembro dele, penso em quanto é importante avaliar nossas atitudes, nossos projetos e anseios. De tempos em tempos, eles podem mudar, assim como nós mesmos. E não é só diante do inesperado. Quem somos e o que oferecemos aos outros podem, sim, ser questão de escolha. 

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