Representatividade

Graduada pela PUC Minas, fez a pós-graduação “O jornalista Latino Americano como agente e líder social”, no Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey, no México. Já atuou nas editorias de Economia, Política e Cidades, com passagem pelos jornais Hoje em Dia, Diário do Comércio, além de O Tempo e rádio Super Notícia. Integrante da lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil, de acordo com o ranking “J&Cia dos Mais Premiados da Imprensa Brasileira”, de dezembro de 2019. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa da Rádio Super.

Representatividade

Às vezes, a proteção à base de pano falha

Publicado em: Sex, 27/11/20 - 03h00

Era um sábado comum, de 2014, se não me engano, quando ainda podíamos nos aglomerar em bares e assistir a um jogo do time favorito com os amigos. E assim eu fiz. Até aí, tudo certo. Meu maior erro foi achar que eu poderia passar em um shopping para comprar um presente logo após a partida. Talvez pela descontração do momento, eu esqueci a regra básica para um negro receber atendimento decente: se vestir bem. Claro que não passei impune por estar em uma loja com tênis, short, blusa de time e cabelo amarrado. Como em várias outras ocasiões, fui “colocada no meu devido lugar”.

Na primeira loja, nenhum dos quatro atendentes que estavam de braços cruzados achou que eu merecia atenção. Entrei e saí como uma sombra, tendo conseguido, no máximo, olhares de reprovação. Na segunda loja, um vendedor acenou para o segurança, e todos me olharam. Mas, me atender que é bom, nada. 

Vendo aquela situação, um amigo meu, branco, entrou na loja, também com blusa de time, e foi logo recepcionado por uma atendente sorridente. Quando ele chegou perto de mim, passei a ser vista e me tornei uma cliente como as outras. Optei por não comprar ali e saí do shopping sem o presente e com a autoestima no pé. Podia ser pior: eu poderia ter sido assassinada por um segurança, por exemplo, como ocorreu com João Alberto no supermercado, em Porto Alegre. Sim, também cada situação de humilhação como essa nos mata um pouco por dentro. Desde aquele dia, nunca mais fui malvestida a um shopping.

Aliás, também evito ir de chinelo a supermercados. Nas vezes em que descumpri essa regra, me arrependi. Como no dia em que um segurança ficou andando atrás de mim pelos corredores, talvez com medo de furto. Quando parei em frente a uma prateleira, ele veio com um cordial “posso te ajudar, senhora?”. Mesmo eu agradecendo a oferta e dizendo que estava tudo tranquilo, ele pareceu não ter se convencido disso, e tive companhia até a hora em que passei pelo caixa. Paguei a conta e saí arrastando meu chinelo.

E os clientes dos supermercados? Várias vezes me perguntam: “Você trabalha aqui?”. Acho louvável eu ter essa cara de trabalhadora, mas a origem desse pensamento me incomoda. Muitas pessoas acreditam que nós, negros, só podemos pertencer a certos ambientes por meio do serviço.

Voltando à questão da vestimenta, no aeroporto, então, tenho que ir vestida quase que como uma executiva. Nos dias em que me descuidei um pouco da aparência ou optei por roupas mais leves, porque o destino era praia, fui olhada por muitos quase que como uma extraterrestre. Por mais incrível que pareça, foi nessas ocasiões em que eu mais caí em inspeções aleatórias nas salas de embarque. Coincidências existem, né?

Tem momentos em que nem uma “beca de respeito” me salva. Foi assim na última viagem que fiz, quando o detector de metais apitou para uma mala na esteira. Uma mulher branca questionou: “Tudo bem com minha bagagem?”. E a resposta de uma integrante da equipe de inspeção foi no mínimo desconcertante: “Essa bolsa é sua? Achei que fosse dela” – o “ela” em questão era eu. Do alto do meu salto e da minha roupa social, dei de ombros e segui. 

Como outros negros e negras, só quero entrar e sair dos lugares sem julgamentos. Por isso, sigo perdendo meu tempo para ter uma aparência que não me coloque na mira de fuzis ou de olhares maldosos. Uso as roupas então como um escudo. Embora essa proteção à base de pano falhe às vezes, se eu conseguir evitar constrangimentos em metade das minhas saídas, já é um pequeno alívio. Até o dia em que esse preconceito for menor. Se é que esse dia vai chegar. 

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