Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

A arte de olhar a rua

Publicado em: Qui, 22/11/18 - 02h00

Quem viveu Belo Horizonte nas décadas de 90 e 2000 talvez se lembre das pinturas curiosas que surgiram em edifícios no centro da cidade: um zíper que se abria e descortinava, por trás da paisagem cinza, uma natureza exuberante; uma torneira jorrando água em que um homem surfava; golfinhos voadores sobre uma cidade fabril.

Essas pinturas, feitas por um francês e um brasileiro com poucos recursos, em cadeirinhas penduradas em cordas a metros de altura, marcaram uma geração. E mudaram a paisagem do centro da cidade, criando novas referências: aquele prédio com a pintura de Tiradentes, a esquina da cachoeira etc.

As obras já desapareceram, mas tiveram seu papel no impulsionamento de uma nova cena de arte pública na cidade, que surgiu com o Cura – Circuito Urbano de Arte. O Cura é um festival criado por três mulheres que chegou a sua terceira edição e já cobriu com tintas quase 10 mil metros quadrados em dez empenas cegas do centro de BH. “Empena cega” é aquela parte do prédio que não tem janelas, onde os “olhos da rua” (termo usado pela jornalista Jane Jacobs para a relação estabelecida entre edifícios e espaço público) deixam de existir.

O centro da cidade tem dezenas dessas empenas, e certo dia as organizadoras do Cura perceberam que era possível ver muitas delas a partir da rua Sapucaí – uma rua histórica de onde se tem uma visão privilegiada do centro, graças à topografia acidentada e à distância das construções altas promovida pelas linhas do trem e do metrô, da praça da Estação e arredores. Ali, há um belo horizonte.

A ideia do Cura é simples e genial: a cada edição do festival, alguns artistas são convidados para pintar uma empena. Durante o período da pintura, instala-se na rua Sapucaí um mirante, onde as pessoas podem ir assistir às pinturas, participar de oficinas, debates ou simplesmente passear.

A pintura de uma empena de dezenas de metros não é algo simples. Você precisa instalar andaimes no alto do prédio e um forro sobre o telhado, para estruturar os balancinhos que descerão pela fachada. Artistas e seus assistentes passam dias pendurados nesses balancinhos. No Cura, quem leva binóculos para a rua Sapucaí pode assistir a esse processo em detalhes.

Quando Alberto da Veiga Guignard era professor de artes em Belo Horizonte, na década de 40, levava os alunos para assistirem a Cândido Portinari pintar os murais da igreja da Pampulha. Minha avó, Maria Helena Andrés, era uma dessas alunas e lembra o quanto essas expedições foram importantes na sua formação como artista. Hoje, observar a atuação ao vivo dos artistas que interferem na cidade é uma possibilidade aberta.

Há quem se preocupe com a possibilidade de projetos como o Cura gerarem aquilo que se chama “gentrificação”: com o embelezamento da região, provocar uma onda de aumento de aluguéis e elitização do espaço. Processos assim ocorrem em cidades como Berlim, Paris, Nova York e Barcelona.

Tenho dois comentários sobre isso. O primeiro é que não temos, na periferia da periferia do capitalismo, condições socioeconômicas semelhantes, como classes médias crescentes e interesse turístico. O segundo é que, mesmo nos lugares em que a gentrificação de fato ocorre, o debate tem sido cada vez mais sobre como evitar os impactos – e não sobre deixar de fazer melhorias urbanas.

As cidades não são somente lugares da função e do trabalho. Elas possuem sentido simbólico e de congregação. As melhores cidades têm espaços públicos de referência, locais do encontro e do lazer: desde as praças da matriz nas cidades do interior até a avenida Paulista aberta nos fins de semana.

Em Belo Horizonte, a rua Sapucaí apresenta esse potencial, de ser o lugar em que famílias vão com crianças durante o dia, casais passeiam no fim de tarde, a cultura ferve à noite. Lugar de ver e ser visto, de estar em comunidade.

O Cura potencializa essa vocação e nos faz imaginar aquela rua destinada aos pedestres, com calçadas largas, árvores, bancos, bares e restaurantes que atendam diversas classes econômicas. Gente que caminha e gente que para, observando a galeria a céu aberto de dia e de noite. Os olhos da rua em pleno funcionamento, ainda que seja de binóculo. 

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