Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

Como destruir a cidade

Publicado em: Qui, 07/07/16 - 04h30
Tapume de obra na região do viaduto Guararapes. Crédito: Ana Cristina Drummond | Foto: Ana Cristina Drummond

Joaquim tem os cabelos brancos, o rosto enrugado e o olhar cansado. Com seus setenta anos, gostaria de continuar trabalhando, mas acabou se aposentando à força. O imóvel em que ele trabalhava com reciclagem de metais foi demolido para dar lugar a pistas para automóveis.

Joaquim não concordava com o preço da desapropriação, que era metade de um imóvel em frente, mas teve que aceitar. Recebeu somente 1/3 e batalha pelo resto na justiça. Ele ficou ainda com uma ponta do terreno, onde é proibido construir. Não bastasse, a prefeitura continua a cobrar dele o IPTU do terreno inteiro.

A história de Joaquim é só uma dentre as de muitos moradores da região norte de Belo Horizonte, nas proximidades da avenida Pedro I. Boa parte deles tem idade avançada e muitos viviam do aluguel de lojas ou casas, que foram demolidas em nome do “progresso”. Houve quem teve AVC, quem tentou suicídio e quem hoje sobrevive em meio a um bairro despedaçado.

Em 2011, moradores da região solicitaram à prefeitura que se pronunciasse sobre uma série de impactos que estavam se desenhando. À época, o secretário de obras era Murilo Valadares, homem de confiança do governador Fenando Pimentel. Em sua resposta, ele afirmou que a poluição do ar se reduziria, que as obras não causariam impactos nos edifícios, que os viadutos não seriam vistos das janelas.

Se você pinta um muro de cinza, ele fica cinza. Se você aumenta espaço para automóveis, induzindo a demanda, corta árvores e derruba edifícios comerciais que protegiam o interior do bairro, o resultado só pode ser mais barulho, poluição e acidentes. A situação atual é esta, que conta ainda com calçadas esburacadas, comércio de rua extinto e edifícios danificados.

As profecias de Murilo Valadares falharam, mas ele foi promovido: hoje é Secretário de Obras Públicas no governo do Estado. O viaduto Guararapes, concebido em sua gestão, acabou caindo em julho de 2014, durante a Copa do Mundo. Nesse momento, o secretário de Obras da Prefeitura já era Josué Valadão, que foi cogitado para se candidatar a prefeito.

A queda do viaduto tirou a vida de Hannah, que tinha uma filha de 5 anos, e a de Charlys, que cuidava sozinho da mãe divorciada. Outras 23 pessoas ficaram feridas. Alguém tente explicar aos familiares das vítimas que os responsáveis pela tragédia hoje conquistam cargos mais altos. Quem conseguir, explique também a frase do prefeito Márcio Lacerda de que “acidentes como esse acontecem”.

Esta semana faz dois anos que o viaduto caiu, e os familiares das vítimas não foram indenizados. Os moradores dos edifícios que tiveram problemas estruturais tampouco. Os R$12 milhões pagos à construtora não foram devolvidos aos cofres públicos.

À época, argumentei em um artigo que o viaduto não faria falta para o trânsito. Me baseava em estudos feitos em várias cidades do mundo que demonstram que aumentar infra-estrutura para automóveis não é solução. A prefeitura atual nunca aceitou o argumento, mas, um ano depois, um estudo da BHTRANS mostrou que o viaduto era de fato desnecessário.

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Mais do que desnecessário, esse tipo de obra destrói a cidade em volta. No clássico livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, Jane Jacobs mostra como a hegemonia dos automóveis causa erosão urbana: gera espaços e cidades inóspitos, desestimulando pedestres e ciclistas. Ir à padaria ou ao supermercado se torna um martírio se você tem que atravessar uma avenida duplicada, viadutos, trincheiras.

A região em volta da Avenida Pedro I que Joaquim e tantas outras pessoas conheceram tinha farto comércio de rua. As pessoas do bairro iam a pé ao supermercado, farmácia, padaria e tantas outras lojas. O entorno era arborizado. Centenas de árvores foram cortadas, como pode ser visto em fotografias.

O perverso do modelo rodoviarista é que ele exclui outras formas de vida na cidade. Quem hoje mora no entorno da Pedro I provavelmente tem dificuldades de resolver sua vida cotidiana sem carro. E, ao migrar para o carro, acaba por ajudar a preencher as novas vias e justificar a demanda de mais e mais obras. 

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