Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

Doria, o anti-Bloomberg

Publicado em: Qui, 11/05/17 - 03h00
Rua convertida em espaço de pedestres, em Nova Iorque, e acidente de trânsito na marginal Tietê, em São Paulo | Foto:

Uma matéria publicada pela “Folha de S.Paulo” no domingo mostra crescimento de 51% nos acidentes com vítimas nas marginais Pinheiros e Tietê, em fevereiro e março deste, em comparação com o mesmo período de 2016, quando o limite de velocidade nas marginais era menor. O total de atropelamentos, no mesmo período, duplicou.

João Doria Júnior, prefeito de São Paulo e responsável pelo aumento das velocidades, disse que “não há nenhuma correlação entre o aumento da velocidade nas marginais e o número de acidentes”. A causa do aumento, segundo o prefeito, seria a “imprudência, inclusive, de motociclistas”. A fala do prefeito, sem nenhum fundamento, é um tanto obscurantista. Culpar a imprudência é fácil, difícil é explicar por que ela teria crescido tanto. Já a hipótese de que o aumento dos limites de velocidade tende a fazer crescer os acidentes tem ampla bibliografia. Um estudo apresentado pela Comissão Europeia traz uma série de pesquisas em que essa correlação é demonstrada.

Na década de 80, o pesquisador sueco Goran Nilsson chegou à conclusão de que o aumento de 1 km/h em vias de até 50 km/h resulta no aumento de 4% em acidentes. Se a fórmula fosse aplicada ao aumento médio de 13 km/h nas marginais paulistanas, o crescimento de acidentes deveria ser de 52% – um por cento a mais do que ocorre. Feito há 36 anos e a 10 mil km de distância, o estudo sueco, assim como a recomendação da OMS de limitar vias urbanas a 50 km/h, poderia ser aplicado. Prejuízos materiais e vidas poderiam ter sido preservadas se a racionalidade e o interesse coletivo tivessem preponderado nas políticas públicas.

“In God we trust. Everyone else, bring data”. Esse era o mantra da gestão do ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, focada em dados para analisar a eficácia de políticas públicas. “Se você não está medindo, você não está gerenciando,” dizia, quando prefeito. As transformações em Nova York no período são contadas no livro “Street Fight”, de Janette Sadik Kahn e Seth Solomonow, que estiveram à frente do sistema de transportes na cidade por mais de seis anos. A gestão Bloomberg criou 560 km de ciclovias, outros tantos de corredores para ônibus, fez uma ampla campanha pela redução de velocidade do trânsito, criou sistema de travessia para cegos, converteu ruas em espaços para pedestres.

A intervenção em cada esquina era acompanhada por métricas. O fechamento da Time Square (e outras obras polêmicas) foi realizado por meio de um protótipo, que as startups chamam de MVP – Minimum Viable Product. A lógica é criar um teste rápido, colocar na rua e medir os dados. A Time Square foi fechada com cones e mobiliário provisório, em seguida se mediu a velocidade do trânsito, o número de pessoas, a qualidade do ar, o comércio. Os dados foram positivos, e o projeto foi consolidado.

Levar a mensuração de dados a sério, argumenta Sadik Kahn, permite qualificar o debate público e superar achismos. No Brasil, em que acidentes matam mais do que armas de fogo, permitiria salvar vidas. Na maioria das cidades, não há uma política efetiva de redução de velocidade, embora estudos como o aqui citado demonstrem que isto evitaria milhares de mortes por ano. Além disso, reduzir o limite de velocidade costuma aumentar a velocidade média do trânsito, que passa a fluir mais

Recentemente, quando comparado ao presidente americano Donald Trump, João Doria disse que se identificava mais com Michael Bloomberg. Não é o que se vê. Os números das marginais mostram que o aumento das velocidades foi um equívoco. Um prefeito como Bloomberg reveria a política. Qualquer pessoa de bom senso, também.

Doria, habituado a se vestir de gari, pedreiro, cadeirante, acinzentador de muros, entre outros, quer se fantasiar de prefeito moderno, mas caminha mais próximo da empáfia e do anticientificismo do atual presidente americano, que já em 1985 asseverava: “Quando eu acho que estou certo, nada pode me atrapalhar”.

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