Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

Economia ambulante

Publicado em: Qui, 06/07/17 - 03h30
Praça sete de setembro, em BH. Crédito: Bruno Vieira | Foto: Bruno Vieira

Um homem está sentado no chão. Dois policiais tentam algemá-lo, na base da gravata no pescoço e torção de braço. Ele grita, a voz estrangulada: tira a mão de mim, tira a mão de mim. Os policiais, ao contrário, se amontoam sobre ele. Seu crime foi participar de uma manifestação. A cena, ocorrida na última segunda-feira, pode ser vista em um vídeo na internet.

Um outro policial acha por bem começar a atirar em direção à rua. Pessoas e veículos saem em disparada. É assim que a polícia tem operado: provoca, espera um revide qualquer (uma pedra em um camburão) e parte para tiro, porrada e bomba. Em dois dias, prendeu 24 pessoas, quase todas negras.

Os protestos são contra a retirada dos ambulantes das ruas do centro de BH, pela prefeitura – que propõe a realocação no shopping popular Caetés. No entanto, o Caetés é bastante precário e gera poucas vendas. A PBH prevê uma reforma, mas seria melhor fazê-la antes e realocar depois. Muitas famílias sobrevivem das vendas.

A contraproposta dos ambulantes passa pela criação de corredores populares e feiras regionais, além de modificação do código de posturas para permitir mais atividades comerciais nos espaços públicos.

No clássico livro “Morte e Vida das Grandes Cidades”, a jornalista americana Jane Jacobs aponta os problemas do urbanismo setorizado e do consumo programado (o modelo dos shopping centers) que gera ruas ermas, cidades paranoicas e dependência de automóveis. A diversidade urbana, ao contrário, geraria segurança, convívio e cidades pedestres.

Pense em uma rua vazia, somente com imóveis residenciais, às nove da noite. Agora, imagine o mesmo lugar com alguns comércios e uma feirinha. A rua pode ser a mesma, mas a sensação de segurança é oposta. Com gente circulando, gera-se proteção coletiva espontânea.

Colocar os vendedores ambulantes em um shopping pode dar a ideia de ordem, mas tira das ruas um fator de diversidade. A cidade poderia se beneficiar mais de um projeto de realocação pulverizada, em ruas peatonais e praças. As regras para participar desses espaços poderiam induzir à melhoria e diversificação das atividades, na linha de formação já proposta pela PBH.

Em uma cidade que sofre da monotonia das ruas vazias, a revisão do Código de Posturas é urgente. O comércio ambulante, na maioria dos casos, nos faz muito bem. Que sentido faz os fiscais da prefeitura gastarem seus dias perseguindo floristas, vendedores de frutas, cocada, pirulito, beiju, amoladores de faca?

Mas, hoje, é proibido e a lei deve ser cumprida, certo? Não custa lembrar que a lei, por aqui, sempre foi para poucos. Se não, como explicar ilegalidades intocadas, como os milhares de terrenos em que a taxa de permeabilidade do solo não é respeitada; as guaritas, cancelas e portarias ilegais de condomínios; as empresas de ônibus que não cumprem horários; as calçadas esburacadas; os aplicativos de transporte privado que, até resolução judicial, continuam ilegais e não pagam impostos.

Os camelôs não são o problema da cidade. Quem vive nas periferias convive com calçadas inacessíveis, mato crescendo, postes sem luz, praças sucateadas, esgoto a céu aberto. A Secretaria de Serviços Urbanos, que tem uma equipe qualificada, faria melhor se ocupasse-se destes problemas. Governar para quem precisa é o slogan de Kalil.

O prefeito afirmou que não houve violência policial. Para comprovar isso, bastaria ter acesso aos vídeos do Olho Vivo. No entanto, os vereadores Matheus Simões, Gabriel Azevedo e Juninho Los Hermanos barraram a solicitação para ter acesso aos vídeos, na Comissão de Direitos Humanos. Têm algo a esconder?

O fato de não se cogitar ações truculentas como a desta semana contra ilegalidades mais prejudiciais à coletividade mostra que a questão aqui talvez não seja a aplicação da lei. Mas a aplicação do arraigado racismo brasileiro. Como disse Vania Lucia, camelô há dez anos, em um desabafo ao prefeito:

“Nós não trabalhamos por luxo, nós precisamos trabalhar. Aqui não tem bandido. Aqui tem trabalhador. Aonde você quer fazer a gente parar? Quer destruir os pobres e favelados? Manda soltar uma bomba e acabar com todo mundo de uma vez. Limpa a sua Belo Horizonte, para os ricos viverem em paz, Kalil.”

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