Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

Horror na folia

Publicado em: Qui, 15/02/18 - 03h00

Hoje eu queria escrever sobre a festa na rua. Sobre a alegria dos encontros, dos corpos fantasiados, a redescoberta da cidade. Mas será preciso, mais uma vez, tratar da violência. A violência do aparato policial contra pessoas comuns, que curtiam o carnaval de maneira pacífica.

Sim, infelizmente, é preciso dizer: as principais situações de violência e caos geradas nesse carnaval vieram de ações desproporcionais, abusivas e arbitrárias daqueles que deveriam zelar pela segurança coletiva. Vejamos alguns relatos:

Filhos de Tcha Tcha, Vale das Ocupações do Barreiro

O bloco terminava sua folia, que havia durado mais de dez horas, sem nenhum incidente. Até que, segundo relato do bloco, “o comando da PMMG resolveu, já no final da festa, barbarizar e massacrar os foliões, sem nenhuma justificativa ou tentativa prévia de diálogo.

A força desproporcional incluiu, contra pessoas indefesas que apenas celebravam, tiros de balas de borracha, pancadas de cassetetes, jatos de spray de pimenta, muitas bombas de efeito moral e até na prisão de pessoas inocentes. Na reta da tropa enraivecida, crianças, mulheres, pessoas de todas as idades cujo sua única transgressão era celebrar um Carnaval junto às ocupações urbanas que são símbolo de luta por uma sociedade mais justa.”

Uai Sound System, bairro Nazaré

O relato é de Brunão Uaiss, organizador da festa: “a festa estava apenas se iniciando (lembrando que a intervenção era durante o dia) aí veio um policial militar e ordenou que eu parasse de tocar Reggae porque na cabeça dele isso é música de maconheiro. Ele nem quis ouvir as letras, eu disse que não iria parar de tocar e aí ele se irritou e começou a multar todos os carros da rua. E nisso foi o dia todo ouvindo ameaças: se não trocasse de música iria acabar com a intervenção, prender o som, prender a gente... sendo que não tinha acontecido nem um ato de violência na festa. E por fim acabaram com a intervenção na base das ameaças ... Nós trabalhamos diariamente ajudando os jovens que se envolveram com drogas e querem sair dessa, jovens que se envolveram com o crime e querem tomar outro rumo na vida, pra ter que ficar recebendo humilhação do Estado o tempo inteiro?” 

Show de Marcelo Veronez, na rua Guaicurus

Nas palavras do próprio artista: “Tava todo mundo assistindo o show numa boa. Quase todo o público era preto. Tinha muita vontade de fazer o show pra galera da periferia. A polícia fez um cordão na frente do palco. Teve ordem pra desligar no meio da música. O palco inteiro foi desligado no meio da música. As pessoas foram retiradas da rua guaicurus de forma autoritária, desproporcional, sem nenhum motivo. Não havia nenhuma sombra de confusão. Mais pra baixo, na mesma rua teve spray de pimenta, teve cacetete.”

Me Leva Felicidade, bairro Jardim Felicidade

Segundo Cleiton Henriques, morador do bairro, o bloco estava tranquilo e pacífico até que “as 23h30 viaturas da policia militar foram aparecendo, todos ficaram inquietos, muitas crianças correram quando um policial avançou no meio da multidão com a arma em punho e logo selecionou uns dois "suspeitos" apontando a arma para a cabeça deles bem ali no meio da multidão. Em seguida, um grupo maior de policiais apareceu e com arrogância o policial intimidava e perguntava de quem era o carro de som, quem estava organizando, mas com pouca disponibilidade para escutar, ameaçava rebocar o veiculo e multar”.

Os relatos apresentam diversidade territorial e musical (e diferentes níveis de gravidade) mas guardam um elemento em comum: as vítimas são, principalmente, pessoas pobres e periféricas, para quem a atuação violenta do Estado não é exatamente novidade (não custa lembrar que a Polícia brasileira é a que mais mata no mundo).

Mais de 40 blocos do carnaval de BH assinaram um manifesto pedindo o fim da repressão policial à festa. Dentre os blocos, estão alguns dos maiores e dos mais tradicionais da cidade. O comando da Polícia e o governador do Estado, Fernando Pimentel, precisam se manifestar. Caso não o façam, estarão incentivando a bárbarie e o terror nas organizações que deveriam zelar pela segurança coletiva. 

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