ROBERTO ANDRÉS

Multar pedestres?

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 09 de novembro de 2017 | 10:14
 
 
Ilustração de autor desconhecido da realidade da vida pedestre

O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) regulamentou, no mês passado, uma lei que multa ciclistas e pedestres por infrações de trânsito. Quem atravessar fora da faixa ou andar pela via pode ser multado em R$ 44,19. Ciclistas nas calçadas ou na contramão podem ter as bicicletas apreendidas e pagar R$ 130,16 de multa.

O argumento é que, “ainda que o pedestre seja a parte mais frágil, ele também pode causar um acidente quando não cumpre as regras do trânsito e coloca todos os outros em situação de risco”, nas palavras do presidente do Contran, Elmer Vicenzi, ex-delegado da Polícia Federal e  chefe do Serviço de Repressão a Crimes Cibernéticos.

Não é possível encontrar nenhuma referência à experiência de Vicenzi na área de mobilidade e cidades. Sua fala e a regulação demonstram desconhecimento da dinâmica urbana, da realidade das cidades brasileiras e das boas práticas internacionais.

Não há cidade no mundo que espere reduzir acidentes multando pedestres. É senso comum no meio que intensidade e velocidade do trânsito são responsáveis por mortes e acidentes. Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que as chances de morte em um atropelamento são de 10% com o veículo a 30 km/h, mas saltam para 90% com o veículo a 60 km/h.

A OMS é taxativa: recomenda a todas as cidades que reduzam a velocidade do trânsito, a fim de salvar vidas. Aponta que a redução em 1 km/h na velocidade do trânsito diminuiria de 2% a 3% dos acidentes. Mas o Contram prefere multar pedestres.

Pedestres representam a maior parte das viagens nas cidades brasileiras. Andar a pé ou de bicicleta não polui e quase não provoca acidentes. Esses deslocamentos deveriam ser incentivados. No entanto, a infraestrutura urbana para pedestres é precária. Os direitos dos pedestres, previstos no Código de Trânsito, não são respeitados.

É direito do pedestre ter calçada ou pista adequada para andar. Qualquer um que já caminhou pelas cidades brasileiras sabe que as calçadas estão cheias de buracos, degraus, estreitamentos – isso quando elas existem. Uma campanha de avaliação de calçadas feita em mais de 200 locais no Brasil resultou na nota média de 3,47 em 10. Cerca de 10% dos locais obtiveram nota zero.

A resolução do Contran estabelece que, quando um pedestre caminhar na rua, mesmo se a calçada estiver em péssimas condições, será multado. Com a multa em mãos, ele faz o quê? Segue caminhando pela rua até ser atropelado? Há algo mais próximo da nossa arraigada tradição de culpar as vítimas?

Fora do centro da cidade, quantas faixas de pedestres há nas ruas? Na minha rua, a faixa de pedestres mais próxima está a um quilômetro da minha casa. Com a resolução do Contran, para ir à padaria vou ter que escolher entre dar uma volta de 2 km ou arriscar levar uma multa.

Na rua da escolinha da minha filha, tampouco há faixa de pedestre. Mães e pais já solicitaram à BHTrans uma faixa de pedestres e um quebra-molas, o que não foi atendido. Carros passam em alta velocidade, acima do permitido. Quem deveria ser multado: o pedestre que tenta levar a filha à escola, o carro que desrespeita o limite da velocidade ou a BHTrans, que não faz valer os direitos dos pedestres?

O não atendimento da BHTrans nesse caso específico é uma regra geral nas prefeituras brasileiras. Um estudo feito pelo Mobilize testou o canal de reclamação sobre condições de calçadas em 26 capitais brasileiras. Apenas quatro prefeituras responderam à reclamação. Nas outras 22, o pedestre foi ignorado.

Sou ciclista e busco respeitar as regras de trânsito. Mas, quando não há ciclovia e a via é perigosa, vou pela calçada. Com cuidado, sabendo que o risco para pedestres é mínimo. Agora posso ser multado por não arriscar minha vida no trânsito insano, no qual os carros não respeitam as velocidades nem as distâncias de segurança.

No ano de 2015, mais de 9.000 pedestres morreram nas ruas brasileiras. São números de guerra civil. Ao penalizar as vítimas, fechar os olhos para os problemas reais e desincentivar os modos de deslocamento de menor impacto, o Contran anda na contramão de qualquer possibilidade de melhoria da situação da mobilidade no país. Ao contrário, tende a agravá-la.