Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

Pedala, Kalil

Publicado em: Qui, 26/10/17 - 02h00

Há exatos duzentos anos, surgia um invento fabuloso. A Europa vivia uma tragédia climática, graças à maior erupção vulcânica que se tem notícia, ocorrida na Indonésia em 1815. As cinzas, suspensas no ar, cobriram a atmosfera por anos e fizeram com que o verão de 1817 não chegasse nos países do norte.

Faltava comida para pessoas e animais. Cavalos eram sacrificados ou morriam. Nesse contexto, o jovem alemão Karl von Drais concebeu e realizou a troca dos quatro cascos por duas rodas. Nascia a bicicleta, no início de madeira e movida por passada humana. Pedais só chegariam quarenta anos depois; engrenagem traseira e pneus, no final do século.

As cidades brasileiras, assim como as europeias, viveram a efervescência das magrelas na primeira metade do século 20. Em seguida veio a escalada dos automóveis (e de acidentes e poluição), que desencorajou ciclistas em tantos cantos do planeta.

A realidade que temos no Brasil já foi a de muitas cidades europeias. Amsterdam, Copenhague, Berlim, entre outras, tiveram quedas brutais no uso de bicicletas a partir dos anos 1950. Mas reverteram essa situação com políticas públicas.

Estas histórias são contadas no artigo Bicicleta Irresistível, dos pesquisadores americanos John Pucher e Ralph Buehler. Com o aumento dos acidentes e mortes, houve grande mobilização social em cidades da Holanda, Alemanha e Dinamarca. A partir dos anos 1970, as políticas urbanas passaram a priorizar ciclistas e pedestres, com construção de ciclovias e bicicletários, redução da velocidade e endurecimento das leis de trânsito para motoristas.

Quando essas políticas começaram, havia certa polêmica. Na Holanda, duvidava-se da adesão à bicicleta em um clima frio e chuvoso. Na Dinamarca, protestos contra as ruas de pedestres afirmavam: “não somos italianos”. Hoje, esses países tem as maiores taxas de ciclismo do mundo e as ruas de pedestres vivem lotadas. 

Belo Horizonte tem nas mãos um projeto de incentivo a bicicletas de qualidade. O Plan Bici foi elaborado pela BH em Ciclo, junto a técnicos da Prefeitura e outras entidades. O plano propõe aquilo que foi necessário para tornar a bicicleta irresistível nos países do norte: ciclovias, redução de velocidades, integração com transporte coletivo, bicicletários.

A Prefeitura sinalizou que apoiaria o Plan Bici, mas nada tirou do papel. As ações previstas para 2017 estão atrasadas e o decreto que oficializaria o plano não saiu. Apesar do esforço da sociedade, parece que estamos diante de outra falsa promessa. A gestão anterior da PBH foi campeã em falsas promessas. No caso das ciclovias, a meta era chegar a 200 quilômetros em 2016, mas o resultado foi de meros 70 km. Hoje temos uma rede cicloviária banguela, que não se conecta.

Há muitos motivos para implementar o Plan Bici. O primeiro é que bicicletas protegem vidas. Promovem a saúde de quem pedala e fazem reduzir os acidentes, que no Brasil chegam a matar mais do que armas de fogo. Não emitem poluentes, reduzindo a poluição do ar que tantas vidas tira nas cidades.

Outro motivo é que o Plan Bici é extremamente barato. Os cerca de R$130 milhões necessários para fazer uma revolução ciclística em Belo Horizonte não são nada perto do que a Prefeitura gasta com túneis, viadutos, duplicações de avenidas (obras que não melhoram o trânsito e que geram altos custos de manutenção).

Além disso, bicicletas são democráticas e populares. Ao contrário do que se costuma dizer, é a população mais pobre e periférica a maior beneficiária. Em São Paulo, os bicicletários integrados a estações de transporte coletivo são mais usados nas periferias da cidade, onde a população é mais pobre.

Além de tudo isso, as bicicletas nos tornam mais felizes. Como coloca o antropólogo Marc Augé, “subir numa bicicleta nos devolve uma alma de criança e, assim, nos restitui a capacidade de brincar e o sentido do real.” De bicicleta, deslocar-se na cidade pode deixar de ser um martírio e se tornar um prazer.

Para isso, é preciso segurança, qualidade e integração com outros modos de transporte. O Plan Bici vai nesse caminho. Já passou da hora da PBH passar das promessas à ação. É da vida que estamos falando. Pedala, Kalil.

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