Roberto Andres

Arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista PISEAGRAMA; o colunista escreve quinzenalmente às quintas-feiras

Polícia para quem?

Publicado em: Qui, 22/02/18 - 03h00

No último artigo, relatei denúncias de violência policial durante o carnaval. Optei por dar o máximo de espaço para os relatos, por julgar ser importante ouvir essas vozes. O texto recebeu uma chuva de críticas na página de Facebook do jornal. Achei importante respondê-las e abordar a questão da polícia no Brasil.

A crítica mais correta é que o artigo não ouviu os dois lados. É verdade. Mas é também uma compensação proposital: quantas vezes, na imprensa, a versão da polícia ganha destaque, enquanto as pessoas comuns sequer são ouvidas? Quantas vezes se fala em confronto, quando o que houve foi ataque policial, violência gratuita ou até massacre?

Veja-se o caso do bloco Filhos de Tcha Tcha. Relatos de várias pessoas que lá estavam são idênticos: a polícia chegou com truculência, alguém reagiu minimamente e isso justificou um ataque com arsenal de guerra: bombas, balas de borracha, cassetete à rodo.

Não, comentarista de redes sociais, isso não é restabelecer a ordem. É tocar o terror. Uma suposta pedrada não pode ser justificativa para um ataque bélico. A polícia não é, ou não deveria ser, uma criança caprichosa e sádica.

Como aponta a criminóloga Vera Malaguti, a polícia brasileira nasce, no contexto da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, “para dar segurança à elite e colocar medo nos escravos”. Ou seja, ao invés de visar a convivência democrática, seu surgimento busca garantir privilégios, no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.

Na ditadura militar, a polícia foi anexada ao exército, por um decreto-lei de 1969. Trata-se de uma excrescência: a lógica militar (hierarquizada, focada no combate a inimigos) em nada tem a ver com o foco na mediação de conflitos que deve ter um policial na sociedade. Isso quem argumenta não sou eu, mas a delegada de polícia Bianca Braille, em artigo recente.

O modelo brasileiro é uma distorção da maior parte dos países do mundo, onde a responsabilidade pelo policiamento ostensivo é das polícias civis. Não por acaso, em uma pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas, mais de 70% dos policiais militares se manifestaram a favor da desmilitarização da polícia. Também, pudera: quase 40% dos praças afirmaram ter sofrido tortura física em treinamentos e mais de 60% já foram humilhados por seus superiores.

Como argumenta Túlio Vianna, se o “treinamento militar convence um soldado a se deixar tratar como um objeto por seu comandante, é natural que esse soldado trate seus inimigos como objetos cujas vidas podem ser sacrificadas”. Ou, ainda, “ae um policial militar foi condicionado a respeitar seus superiores sem contestá-los, como exigir dele que não prenda por “desacato à autoridade” um civil que “ousou” exigir seus direitos em uma abordagem policial?”

O resultado é que a polícia brasileira é a que mais mata no planeta. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 3.320 pessoas mortas oficialmente (fora os não contabilizados) em operações policiais somente no ano de 2015. Mas a polícia brasileira é também a que mais morre – 358 policiais foram vítimas de homicídio em 2015. Nessa guerra sem vencedores, morrem sempre os mesmos: tanto na polícia quanto na sociedade, são jovens pobres, moradores de periferias, em sua maioria negros.

Alô, espectador de programas de auditório que clamam pelo espetáculo policial: se essa lógica funcionasse, a violência no país estaria diminuindo. Mas os números mostram aumento da violência e das mortes por armas de fogo ano a ano. As experiências que têm obtido bons resultados vão no sentido contrário: desmilitarização das polícias, aproximação com a sociedade, respeito a direitos humanos, policiamento comunitário.

Como bem lembra a delegada Bianca Braile, policiais não são heróis, nem guerreiros. Tampouco podem ser foras-da-lei, que violam direitos constitucionais. São profissionais que devem garantir direitos e que também são sujeitos de direitos. Não podem ser torturados e tampouco podem torturar. Que algo tão óbvio precise ser dito, só fica mais evidente a urgente transformação nessa corporação cujas práticas remetem a nosso vergonhoso passado escravocrata e a nosso último período autoritário. 

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