ROBERTO ANDRÉS

Precisamos falar sobre pixo

Redação O Tempo

Por Roberto Andrés
Publicado em 03 de março de 2016 | 03:25
 
 
Quem emporcalha a cidade? A companhia de saneamento que não trata o esgoto, a prefeitura que concreta os rios ou o artista que denuncia escrevendo na viga? Crédito: Comum Comum

Nos anos 80, em escola pública no interior, tinha caderno de caligrafia. Como eu era o rei dos garranchos, vivia às voltas com eles. A mão doía, a cabeça fervia e o para-casa extra nunca acabava. E a letra nada de melhorar. Ao lado, a colega caxias de letra impecável e o colega descolado de letra estilizada pareciam deslizar suas mãos sobre o papel.

De repente, um colega é preso. A polícia invade sua casa, apreende camisas, bonés, bandeiras, tintas, cadernos. Ele é acusado de levar sua caligrafia estilizada para muros da cidade. A parede em questão foi limpa com pano e detergente, em poucos minutos, mas ele está há mais de 9 meses na cadeia.

Infelizmente, entre o primeiro e o segundo parágrafo há um salto de 30 anos. Não estamos mais nos confins da ditadura militar, mas no ano de 2015, em Belo Horizonte. O expediente usado é a tipificação de um crime de “menor potencial ofensivo”, a pixação, em “formação de quadrilha”. Ele já havia sido usada em 2010, com outros seis pixadores, que chegaram a ficar mais de 2 anos presos.

À época das prisões, manchetes na imprensa falavam de “emporcalhar a cidade”. Chama atenção o uso de critérios estéticos para definição de crimes. As mesmas pessoas que toleram os grafites coloridos, e muitas vezes os exaltam, vêm na grafia preta a encarnação do próprio satanás.

Uma vez integrei a banca de graduação de um pixador. Formado em Belas Artes na UFMG, ele também faz colagens, pinturas, stencils e grafites. Admiro vários de seus trabalhos, mas o que mais gosto é justamente uma pixação. Sobre as vigas da caixa de concreto que encalacra o rio Arrudas, ele grafa: LEMBRA, ISTO É RIO.

Quem emporcalha a cidade? A companhia de saneamento que não trata o esgoto, a prefeitura que concreta os rios ou o artista que denuncia escrevendo na viga? Foi ele quem me contou que a polícia, ao flagrar alguém desenhando nos muros, utiliza como critério criminal a paleta cromática aplicada. Se tiver muitas cores, é grafite: tá liberado. Se tiver só preto, é pixação: vai pro xilindró.

Se os policiais entendessem um pouco de arte, ao invés de bater e prender, poderiam subornar (coisa que não é tão rara): “me dá 30% que eu libero”. Pois o sistema da arte, ávido por novidades conceituais e oportunidades financeiras, já aceitou e incorporou a pixação há muito tempo. Bienais de arte, galerias e residências artísticas no mundo todo já expuseram pixos, grapixos, stencils e outras formas de intervenção nas ruas.

Mas, muito mais do que a aceitação do pixo pela arte, importa entender de onde ele vem. O psicanalista e professor emérito da UFMG, Célio Garcia, fascinado pelo tema, busca analisar “a urgência do pixador”. Análise que chega ao fato de que, para a maior parte das pessoas, o bairro é precário, o ônibus é caro e lento, a vida é pesada, a grana é pouca, jovens morrem aos montes, mas é como se isso não importasse e paira sobre tudo o silêncio do falso consenso.

“A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à cidade”, coloca a filósofa Márcia Tiburi. É a erupção de vozes que não são escutadas, de escritas sem lugar, a partir de uma gramática própria e cheia de imperfeições. É um salto no vazio, uma tentativa de dizer “nós existimos e a cidade não é feita para nós.” Claro que há o direito privado ao muro branco, mas está no interstício público-privado. E o espaço público é essencialmente lugar do conflito, da exposição de diferenças.

Nos processos, acusa-se os pixadores de macular a “higidez” do patrimônio cultural. Palavra feia esta, higidez, que significa salubridade. Ora, não há cidade saudável que não seja a múltipla expressão de suas várias classes, seus vários sujeitos e territórios. Salubridade não é o muro branco. Vestir um doente terminal com uma roupa alvejada não vai curá-lo. Esconder os conflitos sob o tapete, com a mão forte da lei, não torna uma cidade mais saudável.

Hoje trabalho com arquitetura e design, mas minha letra continua péssima. Quando vejo os pixos na cidade, não vejo porcaria: vejo rigor, precisão, esmero, talento. Ao invés de ojerizar aquilo que não entendo, gasto meu tempo decodificando aqueles textos, vendo a cidade como cadernos de caligrafia voluntários e livres, em busca do que dizem esses colegas corajosos e de letra bonita.